quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
SEU GERCINO, UMA VIDA INTEIRA NA HISTÓRIA XUKURU DO ORORUBÁ
SEU GERCINO, UMA VIDA INTEIRA NA HISTÓRIA XUKURU DO ORORUBÁ
Gercino Balbino da Silva, conhecido por “Seu Gercino”, faleceu aos 83 anos em junho de 2007. Nasceu em 1920 na Aldeia Cana Brava, uma das muitas localidades espalhadas pela Serra do Ororubá, nas terras dos Xukuru. Na época as terras do antigo aldeamento declarado extinto em fins do século XIX, estavam invadidas por fazendeiros criadores de gado e senhores de engenhos que produziam cachaça e rapadura. Os Xukuru eram chamados de caboclos, tendo assim suas identidades negadas e consequentemente o direito as suas terras. Muitas famílias indígenas foram perseguidas, expulsas se dispersaram pela região, foram para as periferias das cidades e capitais. Outras passaram a trabalhar em suas próprias terras tomadas pelos fazendeiros e donos de engenhos. Algumas resistiram em pequenas glebas de terras, os “sítios” na sua maioria em locais de difíceis acessos.
Uma grande produção de leite no município de Pesqueira. Fartura para uns poucos, miséria para muitas famílias Xukuru. Uma época difícil rememorada por Seu Gercino. Época de muita fome, com muitas crianças mortas por desnutrição como demonstram os próprios dados oficiais nos arquivos da Prefeitura de Pesqueira. O menino Gercino foi um dos sobreviventes.
Sem terras para plantar e viver, os pais de Seu Gercino foram morar em Sítio do Meio, também na Serra do Ororubá, com os avós do menino que trabalhavam “de alugado” para um fazendeiro local. Desde criança Gercino enfrentou uma vida dura. Com oito anos trabalhava no “cabo da enxada”. Trabalhar também “de alugado”, ganhando cinco tostões por dia. Metade da diária paga a um trabalhador adulto.
Assim como as demais famílias indígenas na Serra do Ororubá, além do trabalho alugado os familiares de Seu Gercino eram moradores nas terras em mãos dos fazendeiros. Moravam “de favor” e plantavam roça: milho e feijão para a subsistência. Com o compromisso de plantar o capim para o gado do invasor. Muitas vezes, mal dava tempo para colheita, o milho ainda verde o fazendeiro soltava o gado que destruía a roça. Se reclamasse eram expulsos, sem direito algum, a casa derrubada e o terreno transformado em plantio de pasto para os bois. Na lógica capitalista os bois tinham valor no lugar das vidas humanas.
Nos tempos em que seca atingia o Agreste e até a Serra do Ororubá, Seu Gercino acompanhou seus parentes índios xukurus que migraram para “o Sul”, como chamavam a Zona da Mata Sul de Pernambuco, para trabalhar nos canaviais, nas usinas de cana-de-açúcar. Na esperança de retornar trazendo um pouco de dinheiro para os familiares que ficaram como os mais idosos, mulheres, crianças, todos que não puderam ir.
A viagem de ida era muito penosa. Feita a pé, com poucos víveres. Eram percorridos quilômetros de estradas em dois dias, pela caatinga seca até Caruaru e dali continuavam a caminhada pelas matas de Bonito até a região dos canaviais. Enfrentavam-se vários perigos, além dos ataques de animais, o risco de assaltos e emboscadas, principalmente no retorno quando se portava os valores ganhos no trabalho ás vezes de até quatro meses.
Mas mesmo com toda exclusão imposta pelos fazendeiros, os Xukuru espremidos em seus pequenos sítios, como moradores ou trabalhando nas fazendas e nos engenhos, por meio dos mutirões, das festas e as novenas realizadas em vários locais na Serra do Ororubá, vivenciavam intensos laços e situações de solidariedade. Seu Gercino recordou que durante as novenas se começavam muitos namoros, futuros casamentos.
Participante no Toré que foi sempre dançado anualmente na Vila de Cimbres, no dia 23 de junho nas festas de São João e em 2 de julho e nas de “Nossa Mãe Tamain”, para os católicos romanos Nossa Senhora das Montanhas. Com doze anos Seu Gercino recebeu a incumbência de substituir o antigo “Bacurau”, o guia na frente dos que dançam o Toré. Exerceu essa função com maestria, desenvoltura e beleza até ser impedido pela doença, pois mesmo com peso dos anos de idade, estava lá firme como o “Bacurau” durante o Toré após as reuniões e nas festas realizadas Vila.
Seu Gercino esteve ao lado do Cacique Xicão, de quem recebia muita estima e consideração, nas mobilizações contemporâneas dos Xukuru em busca de seus direitos. Acompanhou Xicão nas muitas viagens dos xukurus ao Recife e a Brasília onde foram pressionar a FUNAI e os demais órgãos públicos, bem como realizar a articulação com aliados, parceiros da sociedade civil nas denúncias das perseguições, violências e assassinatos de lideranças Xukuru, nas reivindicações pela demarcação das terras indígenas. Ele viu a concretização do sonho tão esperado com a demarcação das terras, o que vem possibilitando a fartura, o vicejar da vida e a dignidade para o povo Xukuru.
Seu Gercino, uma vida inteira na história Xukuru! Um octogenário, bastante doente, mas lúcido e muito ativo. Rememorava com vivacidade a história do povo Xukuru por meio das histórias de seus antepassados, da sua própria história de vida. Quanta sabedoria! Como outros idosos e idosas, sábios e sábias Xukuru que marcaram a história de seu povo. Partiu, se encantou, foi se encontrar na aldeia sagrada com tantos outros como Seu Cícero Pereira, Seu Herculano, Xicão, Xico Quelé... De onde estão com seus testemunhos em e de vida, iluminam a caminhada do povo Xukuru e por isso serão sempre lembrados e celebrados.
Edson Silva (UFPE)
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