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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos

487 7 - Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa perspectiva interdisciplinar - Celma Tavares Só se educa em direitos humanos quem se humaniza e só é possível investir completamente na humanização a partir de uma conduta humanizada. Ricardo Ballestreri Introdução A Educação em Direitos Humanos (EDH) é, na atualidade, um dos mais importantes instrumentos dentro das formas de combate às violações de direitos humanos, já que educa na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios democráticos. Mas a sua inserção nos vários âmbitos do saber requer a compreensão do seu significado e da sua práxis. No campo da educação formal, é igualmente necessário estar atento às metodologias que lhe são compatíveis e às possibilidades de que ela possa permear os conteúdos de todas as disciplinas, dentro de uma visão interdisciplinar. Neste sentido, a formação de educadores que estejam aptos a trabalhar a EDH, é o primeiro passo para sua implementação. Ela deve passar pelo aprendizado dos conteúdos específicos de direitos humanos, mas deve especialmente estar relacionada à coerência das ações e atitudes tomadas no dia-a-dia. Sem esta coerência, o discurso fica desarticulado da prática e deslegitima o elemento central da EDH: a ética. Por outro lado, também é preciso ter a consciência de que a formação é o estágio inicial, mas que o processo educativo em direitos humanos é contínuo. Sua finalidade maior é a constituição de uma cultura de direitos humanos e, nesta perspectiva, está sempre em renovação. É a educação em direitos humanos que permite a afirmação de tais direitos e que prepara cidadãos e cidadãs conscientes de seu papel social na luta contra as desigualdades e injustiças. Abordar as questões relacionadas a este processo de conscientização e à construção do saber nesta área é o principal objetivo deste trabalho, que centra seu foco na( Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos ) formação dos educadores em direitos humanos a partir de uma perspectiva interdisciplinar. O processo educativo em direitos humanos A educação em direitos humanos é um campo recente tanto no contexto brasileiro como no latino-americano, apesar de vários documentos internacionais já tratarem sobre a necessidade de sua implementação. Relatório do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, sobre o tema, aponta que, desde a Declaração Universal e, mais especificamente, no Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, o direito à educação em direitos humanos faz parte do direito à educação. (INSTITUTO INTERAMERICANO..., 2000, p. 6). Nesta perspectiva, identifica-se uma relação intrínseca entre ambas. A educação é o caminho para qualquer mudança social que se deseje realizar dentro de um processo democrático. A educação em direitos humanos, por sua vez, é o que possibilita sensibilizar e conscientizar as pessoas para a importância do respeito ao ser humano, apresentando-se na atualidade, como uma ferramenta fundamental na construção da formação cidadã, assim como na afirmação de tais direitos. Magendzo (2006, p. 23) a define como a prática educativa que se funda no reconhecimento, na defesa e no respeito e promoção dos direitos humanos e que tem por objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos suas máximas capacidades como sujeito de direitos e proporcionar as ferramentas e elementos para fazê-los efetivos. A finalidade maior da EDH, portanto, é a de atuar na formação da pessoa em todas as suas dimensões a fim de contribuir ao desenvolvimento de sua condição de cidadão e cidadã, ativos na luta por seus direitos, no cumprimento de seus deveres e na fomentação de sua humanidade. Dessa forma, uma pessoa que goza de uma educação neste âmbito, é capaz de atuar frente às injustiças e desigualdades, reconhecendo-se como sujeito autônomo e, ademais, reconhecendo o outro com iguais direitos, dentro (489 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) dos preceitos de diversidade e tolerância, valorizando assim a convivência harmoniosa, o respeito mútuo e a solidariedade. Através da EDH, é possível contribuir para reverter as injustificadas diferenciações sociais do país e criar uma nova cultura a partir do entendimento de que toda e qualquer pessoa deve ser respeitada em razão da dignidade que lhe é inerente. Pois a dignidade é um valor absoluto que o ser humano possui por constituir-se em um fim em si mesmo e não em um meio. (KANT, 1989). É igualmente por meio dessa educação que se pode começar a mudar as percepções sociais radicais, discriminatórias e violentas, na maioria das vezes, legitimadoras das violações de direitos humanos. E reconstruir as crenças e valores sociais fundamentados no respeito ao ser humano e em conformidade com os preceitos democráticos e as regras do Estado de Direito. (TAVARES, 2006). A relevância da educação em direitos humanos pode ser mensurada através dos documentos da ONU sobre o tema como, por exemplo, o Decênio das Nações Unidas para a Educação na Esfera dos Direitos Humanos (1995-2004) ou o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, aprovado no final de 2004. Este Programa está estruturado em fases sucessivas, com sua primeira etapa guiada por um plano de ação para 2005-2007. O Programa estabelece que a EDH deve fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser humano; promover a compreensão, a tolerância e a igualdade; facilitar a participação efetiva de todos numa sociedade livre e democrática, na qual impere o Estado de Direito; fomentar e manter a paz e promover o desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 4-5). Ainda de acordo com o referido Programa, este tipo de educação deve contribuir para: a) criar uma cultura universal dos direitos humanos; b) exercitar o respeito, tolerância, promoção e valorização da diversidade religiosa, de gênero, de orientação sexual e cultural, e a amizade entre as nações, povos indígenas e grupos étnico-raciais;490 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos c) possibilitar a todas as pessoas terem acesso à participação efetiva em uma sociedade livre. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 5). Anteriormente, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, por meio da Declaração de Viena, de 1993, já tinha indicado sua importância, ao considerar que “a educação, a capacitação e a informação pública em direitos humanos são indispensáveis para estabelecer e promover relações estáveis e harmoniosas entre as comunidades e para fomentar a compreensão mútua, a tolerância e a paz”. (NACIONES UNIDAS, 1993). No Brasil, o campo normativo relacionado aos direitos humanos e a educação nesta área se incorporam nos seguintes documentos: a Constituição Federal (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), os Parâmetros Curriculares da Educação (a partir de 1997), o Programa Nacional de Direitos Humanos (na sua primeira versão, em 1996 e segunda versão, em 2002) e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (também com duas versões, 2003 e 2006). Estes documentos estabelecem as diretrizes e ações direcionadas à formação cidadã. Entretanto, para a construção dessa formação através da EDH, é preciso desenvolver uma prática pedagógica coerente e articulada com seus valores. Esta prática, segundo Nascimento (2000, p.121), oferece “a possibilidade de aprofundar a consciência de sua própria dignidade, a capacidade de reconhecer o outro, de vivenciar a solidariedade, a partilha, a igualdade na diferença e a liberdade”, criando canais de participação e organização que fomentem o exercício efetivo da cidadania e a tomada de decisões coletivas. Este tipo de prática pedagógica deve promover o empoderamento individual e coletivo, com o objetivo de ampliar os espaços de poder e a participação de todos, em especial, dos grupos sociais excluídos e vulneráveis. Para Sacavino (2000, p.46-47), uma educação que promova esse empoderamento, pode fomentar as capacidades dos atores e direcioná-las ao desencadeamento de processos de democratização e de transformação. Portanto, a EDH busca promover processos educativos que sejam críticos e ativos e que despertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como cidadão/cidadã e para a atuação em consonância (491 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) com o respeito ao ser humano. Educar dentro de um processo crítico-ativo significa modificar as atitudes, as condutas e as convicções, mas não pela imposição dos valores e sim por meios democráticos de construção e de participação que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses direitos. De acordo com Morgado, (2001) a prática pedagógica da EDH está pautada no que ela chama de saber docente dos direitos humanos - um conjunto de saberes específicos necessários à prática do educador em direitos humanos. Esse saber, por sua vez, relaciona-se a outros três: o saber curricular, o saber pedagógico e o saber experencial. O primeiro aponta a necessidade de que o currículo seja flexível para adequar-se aos conteúdos de direitos humanos. O segundo corresponde às estratégias e aos recursos utilizados para articular conteúdos curriculares à transversalidade dos direitos humanos. E o último destaca que a vivência desses direitos e a coerência com sua promoção e defesa são essenciais. Dessa forma, é imperioso trabalhar com uma metodologia que articule os três níveis de saberes. Esta metodologia deve incluir uma prática pedagógica que possibilite a percepção da realidade, sua análise e uma postura crítica frente a ela, incluindo duas dimensões essenciais: a emancipadora e a transformadora. Através delas, é possível sensibilizar, indignar-se, atuar e comprometer-se. A formação dos educadores em direitos humanos deve privilegiar as metodologias ativas e participativas de forma a envolver e despertar o interesse, sem esquecer que contextos específicos carecem de abordagens próprias para cada um deles. É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização, a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – a educativa e a social – que deve pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de uma cultura de direitos humanos. Esta é uma premissa para que o saber docente em direitos humanos se articule com os demais saberes socialmente produzidos. Em síntese, a EDH requer uma metodologia, com a seleção e organização dos conteúdos e atividades, materiais e recursos didáticos, que sejam condizentes com a finalidade de um processo educativo em direitos humanos. Estes requisitos são essenciais para que a prática pedagógica ( 492 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) facilite a formação de uma consciência crítica e de um compromisso social com as questões relacionadas à problemática dos direitos humanos. A socialização em uma cultura de direitos humanos A educação em direitos humanos, além de todo processo de formação em seus conteúdos, pretende a socialização dos valores e princípios que lhe são intrínsecos, com o fim de construir e consolidar uma cultura de direitos humanos. Neste caminho, a dita socialização busca envolver todas as pessoas na vivência e no respeito a tais direitos. Esse objetivo vem demarcado no último documento da ONU nesta área, onde a EDH é sinônimo do “conjunto das atividades de capacitação e difusão orientadas a criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos”. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 4). A importância de estabelecer os direitos humanos como uma cultura na sociedade brasileira decorre da estrutura social existente, em que os fortes traços do colonialismo e da escravidão, presentes durante vários séculos, ainda encontram ressonância e alimentam o autoritarismo, a discriminação, a exclusão e o preconceito atuais. Somente quando os direitos humanos passarem a fazer parte do cotidiano de todas as pessoas e se constituam de fato numa cultura, será possível a generalização e perpetuação de crenças, valores, conhecimentos, práticas e atitudes que priorizem o ser humano. É por isso que a EDH deve estar orientada para a plena realização da pessoa, o sentido da dignidade e o fortalecimento dos direitos e liberdades fundamentais, assim como para a promoção da justiça e da paz. Com estes elementos, é possível orientar uma vivência democrática e cidadã de respeito integral ao ser humano. Dentro deste contexto, é fundamental definir o entendimento de democracia, cidadania e direitos humanos que farão parte das estratégias de desenvolvimento de uma educação nessa área. A democracia está fundada nos princípios de liberdade e igualdade e nos ideais de tolerância, de não violência e de irmandade. (BOBBIO, 1985). Por isso, é o regime que dispõe das melhores condições para o exercício da cidadania e do respeito aos direitos humanos. E é também (493 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) onde o Estado de Direito e o funcionamento das instituições do Estado podem chegar a encontrar seu equilíbrio. A cidadania é entendida como a reivindicação de direitos e o exercício das responsabilidades referentes a um poder específico, logicamente, dentro de uma perspectiva de cidadania ativa e participativa e não meramente formal. (GARRETÓN, 1999) Os direitos humanos, por sua vez, constituem prerrogativas básicas do ser humano, construídas historicamente, que concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas e que devem fazer parte do direito positivo dos Estados, apesar de não perderem a legitimação de sua exigibilidade pela ausência de sua inserção no arcabouço jurídico. É neste cenário que a formação cidadã encontra espaço para se ampliar e o exercício da cidadania surge como ponto de apoio num possível ciclo de avanços democráticos e de respeito aos direitos fundamentais. Contudo, é necessário pensar nas estratégias educacionais que sejam eficazes para impulsionar a socialização em uma cultura de direitos humanos. O primeiro passo para isso é entender o processo da ação perceptiva e considerar as representações sociais existentes sobre o tema. A percepção social pode ser definida como a forma com a qual uma pessoa infere as características e intenções de outra e do contexto onde está inserida. Na maioria das vezes, temos mais coisas por perceber do que a capacidade para registrá-las. Como dispomos de limitações de atenção e memória imediatas, realizamos três ações durante o ato de perceber: primeiro, limitamos a seleção da atenção; segundo, recodificamos os acontecimentos de forma a simplificá-los; terceiro, utilizamos ajudas tecnológicas para ampliar o processo cognitivo. (BRUNNER, 1984, p. 144-145). Ao perceber, também categorizamos. O ato de classificar responde à necessidade de inferir de acordo com certas pautas que aprendemos a usar. Em outras palavras, os critérios pelos quais classificamos uma situação, derivam do que aprendemos no processo de socialização. Esta categorização está cheia de conceitos sociais, elaborados na interação entre as pessoas, que simbolizam crenças, sentimentos e valores socialmente apreendidos e aceitos. É assim que, ao classificar e assimilar esta classificação, as idéias preconcebidas sobre os indivíduos e grupos acabam abrindo espaço para (494 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) que os estereótipos e os preconceitos se consolidem e gerem condutas negativas. Por outro lado, é relevante compreender que estas condutas não são automáticas nem lineares e dependem tanto de fatores pessoais como de contextos sociais e legais para se efetivarem. O que significa dizer que também é necessária a existência de um contexto propício para esta efetivação. No tocante às representações sociais, entendidas como a proposta de uma determinada interpretação do que existe e do que acontece, em lugar de outras possíveis, Martin Serrano (1993) considera que é importante não desconsiderar a persistência da parte de um imaginário social com conotações negativas em relação aos direitos humanos. Esse imaginário se alimenta da falta de uma real compreensão do significado desses direitos e da correlação de responsabilidade que foi estabelecida entre sua defesa e o aumento da criminalidade violenta. Apesar de que parece haver uma melhora quanto a esta questão, este imaginário continua encontrando respaldo social, especialmente, nos casos de violência delitiva de grande repercussão. Por isso, para trabalhar a socialização na perspectiva de desenvolvimento de uma nova cultura que tenha o ser humano e sua dignidade como foco e que prime pela construção de uma sociedade inclusiva, é necessário abrir o campo perceptivo do educador e reeducar essa percepção de forma a despertar o interesse e a crítica diante dos acontecimentos. (HORTA, 2000, p.129-130). Essas representações sociais negativas sobre os direitos humanos devem ser igualmente discutidas e reformuladas a partir de uma formação que possibilite a compreensão de que todas as pessoas devem ter assegurada a preservação de sua dignidade e de sua humanidade, a fim de evitar que se confundam os sentimentos de justiça com os de vingança pessoal. Esta formação deve corresponder aos preceitos e valores plasmados pela comunidade internacional, nos diversos documentos de defesa e promoção dos direitos humanos, sendo imprescindível que o educador conheça, experimente e saiba socializar tais preceitos e valores. Neste ponto, apresenta-se como condição primordial que a percepção e as representações sociais, nesse âmbito, sejam consideradas durante a elaboração dos currículos e dos conteúdos que insiram a perspectiva dos direitos humanos e a definição da metodologia e da (495 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) prática pedagógica condizentes com este tipo de educação. Esta condição é significativa tanto para que se incluam as demandas existentes como para que a cultura baseada nestes direitos seja interiorizada e vivenciada, pois o êxito na formação do educador em direitos humanos depende, também, do olhar e das representações que ele possui sobre o tema. O papel da escola e dos espaços de educação não-formal No contexto brasileiro, a EDH vem tendo, historicamente, uma maior inserção nos espaços de educação não-formal, dentro dos movimentos sociais, das associações civis e das organizações não governamentais. Nesse campo, as atividades a ela relacionadas se desenvolvem através da construção do conhecimento em educação popular e do processo de participação em ações coletivas. Estas práticas educativas não formais trabalham a reflexão, estimulam o conhecimento e a atuação para os problemas e as condições de vida, articulando as dimensões dos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais. É preciso explorar todo o potencial existente nas ações das organizações não governamentais, das associações de moradores, dos clubes de mães, entre outras, que atuam na promoção dos direitos humanos no dia-a-dia, pois é inegável o papel que elas possuem na formação em direitos humanos. Como também facilitar o intercambio dos conhecimentos e iniciativas desenvolvidas com a finalidade de agregar este setor e possibilitar a realização de um trabalho coeso. As experiências nessa área são inúmeras e vêm acontecendo desde a década de 80, proporcionando a difusão da EDH frente à ausência, ainda existente, da incorporação destes conteúdos no ensino formal. Portanto, a contribuição desses espaços, na construção de uma cultura de direitos humanos, é de grande relevância e tem que ser sempre considerada dentro das estratégias de ampliação nessa área da educação no país. Por outro lado, apesar da EDH não ser tarefa exclusiva da escola, ocorrendo nos diversos campos de formação e convivência, no âmbito da educação formal identificam-se um conjunto de oportunidades para a disseminação dos conteúdos relacionados aos direitos humanos, assim como para a socialização dos valores(.496 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) O primeiro passo neste sentido é pensar na função da escola dentro dessa missão. Assim sendo, é fundamental redefinir seu perfil e considerar o fato de que a organização escolar não é neutra. De acordo com Silva (2000, p.16), “é necessária a construção de um projeto pedagógico democrático e participativo, onde a formação do sujeito possa ser assumida coletivamente”. A autora igualmente afirma que um projeto de escola que tenha como compromisso a formação em direitos humanos, deve considerar os seguintes elementos: a educação formal é condição essencial à formação da cidadania e tem na escola seu lugar privilegiado; a escola tem que cumprir, de fato, seu papel e função social, enquanto espaço de elaboração e socialização do conhecimento; a educação em direitos humanos deve ser um projeto global da escola; o desenvolvimento de um processo de conscientização dos direitos e deveres deve ser contínuo e permanente. (SILVA, 1997, p.220-221). Conforme análise de Candau (1996, p.14-15), uma proposta metodológica inspirada nesta perspectiva entende que “a escola deveria exercer um papel de humanização a partir da socialização e da construção de conhecimentos e de valores necessários à conquista do exercício pleno da cidadania”. Como a EDH se dá no dia-a-dia, nas diversas situações e relações cotidianas, é preciso haver um compromisso com os direitos humanos e o desenvolvimento de uma prática pedagógica democrática. Da mesma forma, é necessário que o educador não seja um mero transmissor dos conteúdos formais e sim que: a) acredite no que faz, pois sem a convicção de que o respeito aos direitos humanos é fundamental para todos, não é possível despertar os mesmos sentimentos nos demais; b) eduque com o exemplo, porque de nada adianta ter um discurso desconectado da prática ou ser incoerente exigindo aos demais determinadas atitudes que a própria pessoa não cumpre; c) desenvolva uma consciência crítica com relação à realidade e um compromisso como as transformações sociais, já que os propósitos deste tipo de educação é a de formar sujeitos ativos que lutam pelo respeito aos direitos de todos. A EDH, em síntese, necessita estar em conformidade com os princípios e valores que dignifiquem o ser humano e deve ter sua práxis e conteúdos pautados no respeito a tais direitos, assim como na capacidade (497 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) de se indignar frente às injustiças e atos desumanos e de atuar para reverter estas situações. Pensando na prática pedagógica em direitos humanos, Magendzo (2006, p.67-70) lista alguns princípios relacionados com os aspectos conceituais de dita prática. O primeiro deles é o princípio da integração, que defende que os temas e conteúdos de direitos humanos fazem parte integral dos conteúdos e atividades do currículo e dos programas de estudo. O segundo é o princípio da recorrência, onde o aprendizado em direitos humanos é obtido na medida em que é praticado uma e outra vez em circunstâncias diferentes e variadas. O princípio seguinte é o da coerência, pois o êxito do aprendizado é reforçado quando se cria um ambiente propício para seu desenvolvimento. A coerência entre o que se diz e o que se faz, é parte importante neste ambiente. O quarto princípio é o da vida cotidiana. Como a EDH está estreitamente vinculada com a multiplicidade de situações da vida cotidiana, é importante que o educador resgate essas situações e momentos em que os direitos humanos estão em jogo. O princípio da construção coletiva do conhecimento aparece como o quinto, e vem enfatizar a importância de que as pessoas analisem, grupalmente, a informação recebida sobre direitos humanos e deixem de ser meros receptores passivos e se tornem produtores de conhecimento. O último princípio é o da apropriação. Através dele, a pessoa se apropria do discurso recebido e o recria, ou seja, reelabora as várias mensagens e as traduz num discurso próprio, do qual toma plena consciência e que orienta as atuações da sua vida. Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da EDH, o principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experencial.(498 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) A formação dos educadores articulada com uma educação em direitos humanos interdisciplinar e multidimensional. A formação do educador em direitos humanos depende tanto de uma prática pedagógica condizente com o respeito ao ser humano como de uma educação que privilegie a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade que envolve a temática. Esses aspectos representam uma nova postura diante do conhecimento, possibilitando uma ação educativa capaz de ampliar as capacidades, desenvolver a consciência crítica diante da informação e priorizar a interação e participação de forma democrática. O foco, portanto, valoriza o que é construído e não simplesmente transmitido. De acordo com Fazenda (1979, p.39), a interdisciplinaridade “é uma relação de reciprocidade, de mutualidade”, além disso, é um processo que possibilita o diálogo. Andrade (1989, p.10), por sua vez, a conceitua como “a busca teórica e epistemológica de um avanço do conhecimento, a partir dessas conquistas fundamentais, que, de um campo do saber a outro, podem circular com fecundação mútua”. A interdisciplinaridade, que busca o equilíbrio entre a análise fragmentada e a síntese simplificadora, é essencial nas atividades relacionadas aos direitos humanos, porque a formação, nesse âmbito, necessita articular as várias esferas do conhecimento de modo a perpassar todos os seus níveis e conteúdos com a finalidade de possibilitar o olhar para o mesmo objeto sob perspectivas diferentes. Para Gadotti (1999, p.2-3), a metodologia de trabalho interdisciplinar implica em: integração de conteúdos; passar de uma concepção fragmentária para uma concepção unitária do conhecimento; superar a dicotomia entre ensino e pesquisa, considerando o estudo e a pesquisa a partir da contribuição das diversas ciências; e realizar o ensino-aprendizagem centrado numa visão de que aprendemos ao longo da vida. Estes elementos permitem compreender que um trabalho interdisciplinar demanda a superação de que uma única visão, explicação ou conteúdo é suficiente. No campo dos direitos humanos, como nos demais campos do saber, é a multiplicidade de temas, de articulações, de conteúdos que possibilita um processo educativo plural e completo(.499 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) Da mesma maneira, a formação em direitos humanos demanda englobar diferentes dimensões que devem complementar-se com o fim de abarcar o conhecimento desde distintas percepções. Neste ponto, reside a importância de uma formação que aborde a educação em direitos humanos como multidimensional, tentando relacionar diferentes dimensões que devem ser trabalhadas em conjunto. (HORTA, 2000, p.129). O que se busca com a ação pedagógica, através da interdisciplinaridade e de uma abordagem multidimensional, é a tentativa de superação de uma postura isolada e alienada e a formação do sujeito social a partir da vivência de uma realidade global e participativa. Pensar na interdisciplinaridade e nas múltiples dimensões da EDH significa assegurar que os conteúdos relacionados aos direitos humanos estejam presentes tanto no currículo manifesto – planos, programas e textos de estudos – como no currículo oculto. (MAGENDZO, 2006, p.35). Isso significa que, além do interesse pelos objetivos e conteúdos das distintas áreas do aprendizado, também existe a preocupação de que a EDH esteja presente em todos os níveis da prática pedagógica. Neste contexto, o que fica claro, é que uma área como a dos direitos humanos, por sua relevância e pela amplitude de conteúdos teóricos e práticos que são de sua competência, não é condizente com outra forma de abordagem que não seja a interdisciplinar e a multidimensional. Como busca a formação cidadã, a EDH tem que estar em interação com todas as áreas do conhecimento e a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade são recursos que se completam e que têm a finalidade de ampliar as inúmeras possibilidades de interface do conhecimento, possibilitando, ao mesmo tempo, a autonomia e a interação. É através delas que um processo educativo em direitos humanos ultrapassa os limites da simples descrição da realidade e passa a mobilizar as competências cognitivas para auxiliar nas análises, deduções e inferências. Ao mesmo tempo que fomenta a explicação, a compreensão e a intervenção. A formação do educador em direitos humanos, para ser completa, tem que partir dessas premissas. Não pode estar atrelada a uma estrutura fechada de produção do conhecimento. Então, por que não privilegiar a interdisciplinaridade e a abordagem multidimensional na EDH se elas proporcionam as melhores condições para a formação nesta área?( 500 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) Qualquer dificuldade que possa existir nesse sentido, merece a pena ser superada pelo resultado que será alcançado. Claro que isso requer um aprendizado por parte dos educadores, o reaprender a olhar, a articular, a construir junto. Mas as resistências e problemas que podem ocorrer nesse caminho não devem servir de argumento para o desânimo ou a rejeição. O educador em direitos humanos tem diante de si uma responsabilidade imensa. Primeiro, de educar-se a si mesmo e depois, de educar aos demais na tolerância, no respeito, na compreensão da diferença. Segundo, de atuar democraticamente e com persistência para que o compromisso com as transformações sociais, necessárias para reverter às injustiças e desigualdades, possa chegar a ser o horizonte de todos. Conclusões Educar em direitos humanos significa ter a vida cotidiana como referência contínua. É um aprendizado que não ocorre de forma pontual ou isolada, mas que, sistematicamente, faz parte da ação educacional. Por isso, é importante a elaboração de abordagens condizentes com este tipo de educação, que possam contribuir para seu exercício. O ponto de partida deve ser o de uma pedagogia crítica, que articule os saberes docentes em direitos humanos e que oportunize aos educadores uma ampla gama de opções, de observações, de análises, de descobertas. É preciso consolidar o aprendizado pela vivência, fazer do exercício cotidiano da cidadania uma prioridade. Como uma das finalidades da EDH é despertar a responsabilidade com a defesa do respeito ao ser humano, é fundamental sensibilizar e fomentar o compromisso. A formação nesta perspectiva deve propiciar ao educador o conhecimento e a experiência em direitos humanos, mas, sobretudo, oportunizar a socialização dos preceitos e valores relacionados a essa área. O enfoque deve passar pela abordagem interdisciplinar e multidimensional como forma de estabelecer um diálogo com os demais conteúdos e níveis do conhecimento. Uma formação em EDH que não dê preferência a esta questão, será incapaz de romper com as representações (501 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) e percepções prévias e proporcionar aos educadores um outro olhar sobre o qual assentar sua prática. É fundamental educar na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios democráticos; construir uma nova cultura que tenha como centro o ser humano. Este é um desafio no qual a contribuição dos educadores em direitos humanos é inestimável. Por isso sua própria formação deve, desde o princípio, corresponder a estes valores que se pretende socializar. Igualmente, é preciso não perder a perspectiva da coerência entre o discurso e as atitudes tomadas no dia-a-dia. O horizonte será sempre o mesmo: o respeito ao ser humano e a sua dignidade. Mas a construção desse horizonte depende do grau de envolvimento e disposição que pode haver em cada um. Oportunizar, portanto, a formação do educador em direitos humanos, em consonância com os valores que lhe são intrínsecos e desde uma abordagem interdisciplinar e multidimensional, é, na atualidade, um passo a mais na construção de uma cultura de direitos humanos. Referências ANDRADE, José Maria. Interdisciplinaridade em Direitos Humanos. In: FESTES, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos, um debate necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989. v. 2. p.7-38. BALLESTRERI, Ricardo. 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