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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA

Declaração de Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial

PREÂMBULO Reconvocando as várias declarações das Nações Unidas que culminaram no documento das Nações Unidas "Regras Padrões sobre Equalização de Oportunidades para Pessoas com Deficiências", o qual demanda que os Estados assegurem que a educação de pessoas com deficiências seja parte integrante do sistema educacional. Notando com satisfação um incremento no envolvimento de governos, grupos de advocacia, comunidades e pais, e em particular de organizações de pessoas com deficiências, na busca pela melhoria do acesso à educação para a maioria daqueles cujas necessidades especiais ainda se encontram desprovidas; e reconhecendo como evidência para tal envolvimento a participação ativa do alto nível de representantes e de vários governos, agências especializadas, e organizações inter-governamentais naquela Conferência Mundial. 1. Nós, os delegados da Conferência Mundial de Educação Especial, representando 88 governos e 25 organizações internacionais em assembléia aqui em Salamanca, Espanha, entre 7 e 10 de junho de 1994, reafirmamos o nosso compromisso para com a Educação para Todos, reconhecendo a necessidade e urgência do providenciamento de educação para as crianças, jovens e adultos com necessidades educacionais especiais dentro do sistema regular de ensino e re-endossamos a Estrutura de Ação em Educação Especial, em que, pelo espírito de cujas provisões e recomendações governo e organizações sejam guiados. 2. Acreditamos e Proclamamos que: - toda criança tem direito fundamental à educação, e deve ser dada a oportunidade de atingir e manter o nível adequado de aprendizagem, - toda criança possui características, interesses, habilidades e necessidades de aprendizagem que são únicas, - sistemas educacionais deveriam ser designados e programas educacionais deveriam ser implementados no sentido de se levar em conta a vasta diversidade de tais características e necessidades, - aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola regular, que deveria acomodá-los dentro de uma Pedagogia centrada na criança, capaz de satisfazer a tais necessidades, - escolas regulares que possuam tal orientação inclusiva constituem os meios mais eficazes de combater atitudes discriminatórias criando-se comunidades acolhedoras, construindo uma sociedade inclusiva e alcançando educação para todos; além disso, tais escolas provêem uma educação efetiva à maioria das crianças e aprimoram a eficiência e, em última instância, o custo da eficácia de todo o sistema educacional. 3. Nós congregamos todos os governos e demandamos que eles: - atribuam a mais alta prioridade política e financeira ao aprimoramento de seus sistemas educacionais no sentido de se tornarem aptos a incluírem todas as crianças, independentemente de suas diferenças ou dificuldades individuais. - adotem o princípio de educação inclusiva em forma de lei ou de política, matriculando todas as crianças em escolas regulares, a menos que existam fortes razões para agir de outra forma. - desenvolvam projetos de demonstração e encorajem intercâmbios em países que possuam experiências de escolarização inclusiva. - estabeleçam mecanismos participatórios e descentralizados para planejamento, revisão e avaliação de provisão educacional para crianças e adultos com necessidades educacionais especiais. - encorajem e facilitem a participação de pais, comunidades e organizações de pessoas portadoras de deficiências nos processos de planejamento e tomada de decisão concernentes à provisão de serviços para necessidades educacionais especiais. - invistam maiores esforços em estratégias de identificação e intervenção precoces, bem como nos aspectos vocacionais da educação inclusiva. - garantam que, no contexto de uma mudança sistêmica, programas de treinamento de professores, tanto em serviço como durante a formação, incluam a provisão de educação especial dentro das escolas inclusivas. 4. Nós também congregamos a comunidade internacional; em particular, nós congregamos: - governos com programas de cooperação internacional, agências financiadoras internacionais, especialmente as responsáveis pela Conferência Mundial em Educação para Todos, UNESCO, UNICEF, UNDP e o Banco Mundial: - a endossar a perspectiva de escolarização inclusiva e apoiar o desenvolvimento da educação especial como parte integrante de todos os programas educacionais; - As Nações Unidas e suas agências especializadas, em particular a ILO, WHO, UNESCO e UNICEF: - a reforçar seus estímulos de cooperação técnica, bem como reforçar suas cooperações e redes de trabalho para um apoio mais eficaz à já expandida e integrada provisão em educação especial; - organizações não-governamentais envolvidas na programação e entrega de serviço nos países; - a reforçar sua colaboração com as entidades oficiais nacionais e intensificar o envolvimento crescente delas no planejamento, implementação e avaliação de provisão em educação especial que seja inclusiva; - UNESCO, enquanto a agência educacional das Nações Unidas; - a assegurar que educação especial faça parte de toda discussão que lide com educação para todos em vários foros; - a mobilizar o apoio de organizações dos profissionais de ensino em questões relativas ao aprimoramento do treinamento de professores no que diz respeito a necessidade educacionais especiais. - a estimular a comunidade acadêmica no sentido de fortalecer pesquisa, redes de trabalho e o estabelecimento de centros regionais de informação e documentação e da mesma forma, a servir de exemplo em tais atividades e na disseminação dos resultados específicos e dos progressos alcançados em cada país no sentido de realizar o que almeja a presente Declaração. - a mobilizar FUNDOS através da criação (dentro de seu próximo Planejamento a Médio Prazo. 1996-2000) de um programa extensivo de escolas inclusivas e programas de apoio comunitário, que permitiriam o lançamento de projetos-piloto que demonstrassem novas formas de disseminação e o desenvolvimento de indicadores de necessidade e de provisão de educação especial. 5. Por último, expressamos nosso caloroso reconhecimento ao governa da Espanha e à UNESCO pela organização da Conferência e demandamo-lhes realizarem todos os esforços no sentido de trazer esta Declaração e sua relativa Estrutura de Ação da comunidade mundial, especialmente em eventos importantes tais como o Tratado Mundial de Desenvolvimento Social ( em Kopenhagen, em 1995) e a Conferência Mundial sobre a Mulher (em Beijing, e, 1995). Adotada por aclamação na cidade de Salamanca, Espanha, neste décimo dia de junho de 1994. I. ESTRUTURA DE AÇÃO EM EDUCAÇÃO ESPECIAL INTRODUÇÃO 1. Esta Estrutura de Ação em Educação Especial foi adotada pela conferencia Mundial em Educação Especial organizada pelo governo da Espanha em cooperação com a UNESCO, realizada em Salamanca entre 7 e 10 de junho de 1994. Seu objetivo é informar sobre políticas e guias ações governamentais, de organizações internacionais ou agências nacionais de auxílio, organizações não-governamentais e outras instituições na implementação da Declaração de Salamanca sobre princípios, Política e prática em Educação Especial. A Estrutura de Ação baseia-se fortemente na experiência dos países participantes e também nas resoluções, recomendações e publicações do sistema das Nações Unidas e outras organizações inter-governamentais, especialmente o documento "Procedimentos-Padrões na Equalização de Oportunidades para pessoas Portadoras de Deficiência . Tal Estrutura de Ação também leva em consideração as propostas, direções e recomendações originadas dos cinco seminários regionais preparatórios da Conferência Mundial. 2.O direito de cada criança a educação é proclamado na Declaração Universal de Direitos Humanos e foi fortemente reconfirmado pela Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Qualquer pessoa portadora de deficiência tem o direito de expressar seus desejos com relação à sua educação, tanto quanto estes possam ser realizados. Pais possuem o direito inerente de serem consultados sobre a forma de educação mais apropriadas às necessidades, circunstâncias e aspirações de suas crianças. 3.O princípio que orienta esta Estrutura é o de que escolas deveriam acomodar todas as crianças independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísticas ou outras. Aquelas deveriam incluir crianças deficientes e super-dotadas, crianças de rua e que trabalham, crianças de origem remota ou de população nômade, crianças pertencentes a minorias lingüísticas, étnicas ou culturais, e crianças de outros grupos desavantajados ou marginalizados. Tais condições geram uma variedade de diferentes desafios aos sistemas escolares. No contexto desta Estrutura, o termo "necessidades educacionais especiais" refere-se a todas aquelas crianças ou jovens cujas necessidades educacionais especiais se originam em função de deficiências ou dificuldades de aprendizagem. Muitas crianças experimentam dificuldades de aprendizagem e portanto possuem necessidades educacionais especiais em algum ponto durante a sua escolarização. Escolas devem buscar formas de educar tais crianças bem-sucedidamente, incluindo aquelas que possuam desvantagens severas. Existe um consenso emergente de que crianças e jovens com necessidades educacionais especiais devam ser incluídas em arranjos educacionais feitos para a maioria das crianças. Isto levou ao conceito de escola inclusiva. O desafio que confronta a escola inclusiva é no que diz respeito ao desenvolvimento de uma pedagogia centrada na criança e capaz de bem-sucedidamente educar todas as crianças, incluindo aquelas que possuam desvantagens severa. O mérito de tais escolas não reside somente no fato de que elas sejam capazes de prover uma educação de alta qualidade a todas as crianças: o estabelecimento de tais escolas é um passo crucial no sentido de modificar atitudes discriminatórias, de criar comunidades acolhedoras e de desenvolver uma sociedade inclusiva. 4. Educação Especial incorpora os mais do que comprovados princípios de uma forte pedagogia da qual todas as crianças possam se beneficiar. Ela assume que as diferenças humanas são normais e que, em consonância com a aprendizagem de ser adaptada às necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem. Uma pedagogia centrada na criança é beneficial a todos os estudantes e, consequentemente, à sociedade como um todo. A experiência tem demonstrado que tal pedagogia pode consideravelmente reduzir a taxa de desistência e repetência escolar (que são tão características de tantos sistemas educacionais) e ao mesmo tempo garantir índices médios mais altos de rendimento escolar. Uma pedagogia centrada na criança pode impedir o desperdício de recursos e o enfraquecimento de esperanças, tão freqüentemente conseqüências de uma instrução de baixa qualidade e de uma mentalidade educacional baseada na idéia de que "um tamanho serve a todos". Escolas centradas na criança são além do mais a base de treino para uma sociedade baseada no povo, que respeita tanto as diferenças quanto a dignidade de todos os seres humanos. Uma mudança de perspectiva social é imperativa. Por um tempo demasiadamente longo os problemas das pessoas portadoras de deficiências têm sido compostos por uma sociedade que inabilita, que tem prestado mais atenção aos impedimentos do que aos potenciais de tais pessoas. 5. Esta Estrutura de Ação compõe-se das seguintes seções: I. Novo pensar em educação especial II. Orientações para a ação em nível nacional: A. Política e Organização B. Fatores Relativos à Escola C. Recrutamento e Treinamento de Educadores D. Serviços Externos de Apoio E. Áreas Prioritárias F. Perspectivas Comunitárias G. Requerimentos Relativos a Recursos III. Orientações para ações em níveis regionais e internacionais 6. A tendência em política social durante as duas últimas décadas tem sido a de promover integração e participação e de combater a exclusão. Inclusão e participação são essenciais à dignidade humana e ao desfrutamento e exercício dos direitos humanos. Dentro do campo da educação, isto se reflete no desenvolvimento de estratégias que procuram promover a genuína equalização de oportunidades. Experiências em vários países demonstram que a integração de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais é melhor alcançada dentro de escolas inclusivas, que servem a todas as crianças dentro da comunidade. É dentro deste contexto que aqueles com necessidades educacionais especiais podem atingir o máximo progresso educacional e integração social. Ao mesmo tempo em que escolas inclusivas provêem um ambiente favorável à aquisição de igualdade de oportunidades e participação total, o sucesso delas requer um esforço claro, não somente por parte dos professores e dos profissionais na escola, mas também por parte dos colegas, pais, famílias e voluntários. A reforma das instituições sociais não constitui somente um tarefa técnica, ela depende, acima de tudo, de convicções, compromisso e disposição dos indivíduos que compõem a sociedade. 7. Principio fundamental da escola inclusiva é o de que todas as crianças devem aprender juntas, sempre que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que elas possam ter. Escolas inclusivas devem reconhecer e responder às necessidades diversas de seus alunos, acomodando ambos os estilos e ritmos de aprendizagem e assegurando uma educação de qualidade à todos através de um currículo apropriado, arranjos organizacionais, estratégias de ensino, uso de recurso e parceria com as comunidades. Na verdade, deveria existir uma continuidade de serviços e apoio proporcional ao contínuo de necessidades especiais encontradas dentro da escola. 8. Dentro das escolas inclusivas, crianças com necessidades educacionais especiais deveriam receber qualquer suporte extra requerido para assegurar uma educação efetiva. Educação inclusiva é o modo mais eficaz para construção de solidariedade entre crianças com necessidades educacionais especiais e seus colegas. O encaminhamento de crianças a escolas especiais ou a classes especiais ou a sessões especiais dentro da escola em caráter permanente deveriam constituir exceções, a ser recomendado somente naqueles casos infreqüentes onde fique claramente demonstrado que a educação na classe regular seja incapaz de atender às necessidades educacionais ou sociais da criança ou quando sejam requisitados em nome do bem-estar da criança ou de outras crianças. 9. A situação com respeito à educação especial varia enormemente de um país a outro. Existem por exemplo, países que possuem sistemas de escolas especiais fortemente estabelecidos para aqueles que possuam impedimentos específicos. Tais escolas especais podem representar um valioso recurso para o desenvolvimento de escolas inclusivas. Os profissionais destas instituições especiais possuem nível de conhecimento necessário à identificação precoce de crianças portadoras de deficiências. Escolas especiais podem servir como centro de treinamento e de recurso para os profissionais das escolas regulares. Finalmente, escolas especiais ou unidades dentro das escolas inclusivas podem continuar a prover a educação mais adequada a um número relativamente pequeno de crianças portadoras de deficiências que não possam ser adequadamente atendidas em classes ou escolas regulares. Investimentos em escolas especiais existentes deveriam ser canalizados a este novo e amplificado papel de prover apoio profissional às escolas regulares no sentido de atender às necessidades educacionais especiais. Uma importante contribuição às escolas regulares que os profissionais das escolas especiais podem fazer refere-se à provisão de métodos e conteúdos curriculares às necessidades individuais dos alunos. 10. Países que possuam poucas ou nenhuma escolas especial seriam em geral, fortemente aconselhados a concentrar seus esforços no desenvolvimento de escolas inclusivas e serviços especializados - em especial, provisão de treinamento de professores em educação especial e estabelecimento de recursos adequadamente equipados e assessorados, para os quais as escolas pudessem se voltar quando precisassem de apoio - deveriam tornar as escolas aptas a servir à vasta maioria de crianças e jovens. A experiência, principalmente em países em desenvolvimento, indica que o alto custo de escolas especiais significa na prática, que apenas uma pequena minoria de alunos, em geral uma elite urbana, se beneficia delas. A vasta maioria de alunos com necessidades especiais, especialmente nas áreas rurais, é consequentemente, desprovida de serviços. De fato, em muitos países em desenvolvimento, estima-se que menos de um por cento das crianças com necessidades educacionais especiais são incluídas na provisão existente. Além disso, a experiência sugere que escolas inclusivas, servindo a todas as crianças numa comunidade são mais bem sucedidas em atrair apoio da comunidade e em achar modos imaginativos e inovadores de uso dos limitados recursos que sejam disponíveis. Planejamento educacional da parte dos governos, portanto, deveria ser concentrado em educação para todas as pessoas, em todas as regiões do país e em todas as condições econômicas, através de escolas públicas e privadas. 11. Existem milhões de adultos com deficiências e sem acesso sequer aos rudimentos de uma educação básica, principalmente nas regiões em desenvolvimento no mundo, justamente porque no passado uma quantidade relativamente pequena de crianças com deficiências obteve acesso à educação. Portanto, um esforço concentrado é requerido no sentido de se promover a alfabetização e o aprendizado da matemática e de habilidades básicas às pessoas portadoras de deficiências através de programas de educação de adultos. Também é importante que se reconheça que mulheres têm freqüentemente sido duplamente desavantajadas, com preconceitos sexuais compondo as dificuldades causadas pelas suas deficiências. Mulheres e homens deveriam possuir a mesma influência no delineamento de programas educacionais e as mesmas oportunidades de se beneficiarem de tais. Esforços especiais deveriam ser feitos no sentido de se encorajar a participação de meninas e mulheres com deficiências em programas educacionais. 12. Esta estrutura pretende ser um guia geral ao planejamento de ação em educação especial. Tal estrutura, evidentemente, não tem meios de dar conta da enorme variedade de situações encontradas nas diferentes regiões e países do mundo e deve desta maneira, ser adaptada no sentido ao requerimento e circunstâncias locais. Para que seja efetiva, ela deve ser complementada por ações nacionais, regionais e locais inspirados pelo desejo político e popular de alcançar educação para todos. II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL A. POLÍTICA E ORGANIZAÇÃO 13. Educação integrada e reabilitação comunitária representam abordagens complementares àqueles com necessidades especiais. Ambas se baseiam nos princípios de inclusão, integração e participação e representam abordagens bem-testadas e financeiramente efetivas para promoção de igualdade de acesso para aqueles com necessidades educacionais especiais como parte de uma estratégia nacional que objetive o alcance de educação para todos. Países são convidados a considerar as seguintes ações concernentes a política e organização de seus sistemas educacionais. 14. Legislação deveria reconhecer o princípio de igualdade de oportunidade para crianças, jovens e adultos com deficiências na educação primária, secundária e terciária, sempre que possível em ambientes integrados. 15. Medidas Legislativas paralelas e complementares deveriam ser adotadas nos campos da saúde, bem-estar social, treinamento vocacional e trabalho no sentido de promover apoio e gerar total eficácia à legislação educacional. 16. Políticas educacionais em todos os níveis, do nacional ao local, deveriam estipular que a criança portadora de deficiência deveria freqüentar a escola de sua vizinhança: ou seja, a escola que seria freqüentada caso a criança não portasse nenhuma deficiência. Exceções à esta regra deveriam ser consideradas individualmente, caso-por-caso, em casos em que a educação em instituição especial seja requerida. 17. A prática de desmarginalização de crianças portadoras de deficiência deveria ser parte integrante de planos nacionais que objetivem atingir educação para todos. Mesmo naqueles casos excepcionais em que crianças sejam colocadas em escolas especiais, a educação dela não precisa ser inteiramente segregada. Freqüência em regime não-integral nas escolas regulares deveria ser encorajada. Provisões necessárias deveriam também ser feitas no sentido de assegurar inclusão de jovens e adultos com necessidade especiais em educação secundária e superior bem como em programa de treinamento. Atenção especial deveria ser dada à garantia da igualdade de acesso e oportunidade para meninas e mulheres portadoras de deficiências. 18. Atenção especial deveria ser prestada às necessidades das crianças e jovens com deficiências múltiplas ou severas. Eles possuem os mesmos direitos que outros na comunidade, à obtenção de máxima independência na vida adulta e deveriam ser educados neste sentido, ao máximo de seus potenciais. 19. Políticas educacionais deveriam levar em total consideração as diferenças e situações individuais. A importância da linguagem de signos como meio de comunicação entre os surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso a educação em sua língua nacional de signos. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais e unidades em escolas regulares. 20. Reabilitação comunitária deveria ser desenvolvida como parte de uma estratégia global de apoio a uma educação financeiramente efetiva e treinamento para pessoas com necessidade educacionais especiais. Reabilitação comunitária deveria ser vista como uma abordagem específica dentro do desenvolvimento da comunidade objetivando a reabilitação, equalização de oportunidades e integração social de todas as pessoas portadoras de deficiências; deveria ser implementada através de esforços combinados entre as pessoas portadoras de deficiências, suas famílias e comunidades e os serviços apropriados de educação, saúde, bem-estar e vocacional. 21. Ambos os arranjos políticos e de financiamento deveriam encorajar e facilitar o desenvolvimento de escolas inclusivas. Barreiras que impeçam o fluxo de movimento da escola especial para a regular deveriam ser removidas e uma estrutura administrativa comum deveria ser organizada. Progresso em direção à inclusão deveria ser cuidadosamente monitorado através do agrupamento de estatísticas capazes de revelar o número de estudantes portadores de deficiências que se beneficiam dos recursos, know-how e equipamentos direcionados à educação especial bem como o número de estudantes com necessidades educacionais especiais matriculados nas escolas regulares. 22. Coordenação entre autoridades educacionais e as responsáveis pela saúde, trabalho e assistência social deveria ser fortalecida em todos os níveis no sentido de promover convergência e complementariedade, Planejamento e coordenação também deveriam levar em conta o papel real e o potencial que agências semi-públicas e organizações não-governamentais podem ter. Um esforço especial necessita ser feito no sentido de se atrair apoio comunitário à provisão de serviços educacionais especiais. 23. Autoridades nacionais têm a responsabilidade de monitorar financiamento externo à educação especial e trabalhando em cooperação com seus parceiros internacionais, assegurar que tal financiamento corresponda às prioridades nacionais e políticas que objetivem atingir educação para todos. Agências bilaterais e multilaterais de auxílio , por sua parte, deveriam considerar cuidadosamente as políticas nacionais com respeito à educação especial no planejamento e implementação de programas em educação e áreas relacionadas. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL B. FATORES RELATIVOS À ESCOLA 24. o desenvolvimento de escolas inclusivas que ofereçam serviços a uma grande variedade de alunos em ambas as áreas rurais e urbanas requer a articulação de uma política clara e forte de inclusão junto com provisão financeira adequada - um esforço eficaz de informação pública para combater o preconceito e criar atitudes informadas e positivas - um programa extensivo de orientação e treinamento profissional - e a provisão de serviços de apoio necessários. Mudanças em todos os seguintes aspectos da escolarização, assim como em muitos outros, são necessárias para a contribuição de escolas inclusivas bem-sucedidas: currículo, prédios, organização escolar, pedagogia, avaliação, pessoal, filosofia da escola e atividades extra-curriculares. 25. Muitas das mudanças requeridas não se relacionam exclusivamente à inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais. Elas fazem parte de um reforma mais ampla da educação, necessária para o aprimoramento da qualidade e relevância da educação, e para a promoção de níveis de rendimento escolar superiores por parte de todos os estudantes. A Declaração Mundial sobre Educação para Todos enfatizou a necessidade de uma abordagem centrada na criança objetivando a garantia de uma escolarização bem-sucedida para todas as crianças. A adoção de sistemas mais flexíveis e adaptativos, capazes de mais largamente levar em consideração as diferentes necessidades das crianças irá contribuir tanto para o sucesso educacional quanto para a inclusão. As seguintes orientações enfocam pontos a ser considerados na integração de crianças com necessidades educacionais especiais em escolas inclusivas. Flexibilidade Curricular. 26. O currículo deveria ser adaptado às necessidades das crianças, e não vice-versa. Escolas deveriam, portanto, prover oportunidades curriculares que sejam apropriadas a criança com habilidades e interesses diferentes. 27. Crianças com necessidades especiais deveriam receber apoio instrucional adicional no contexto do currículo regular, e não de um currículo diferente. O princípio regulador deveria ser o de providenciar a mesma educação a todas as crianças, e também prover assistência adicional e apoio às crianças que assim o requeiram. 28. A aquisição de conhecimento não é somente uma questão de instrução formal e teórica. O conteúdo da educação deveria ser voltado a padrões superiores e às necessidades dos indivíduos com o objetivo de torná-los aptos a participar totalmente no desenvolvimento. O ensino deveria ser relacionado às experiências dos alunos e a preocupações práticas no sentido de melhor motivá-los. 29. Para que o progresso da criança seja acompanhado, formas de avaliação deveriam ser revistas. Avaliação formativa deveria ser incorporada no processo educacional regular no sentido de manter alunos e professores informados do controle da aprendizagem adquirida, bem como no sentido de identificar dificuldades e auxiliar os alunos a superá-las. 30. Para crianças com necessidades educacionais especiais uma rede contínua de apoio deveria ser providenciada, com variação desde a ajuda mínima na classe regular até programas adicionais de apoio à aprendizagem dentro da escola e expandindo, conforme necessário, à provisão de assistência dada por professores especializados e pessoal de apoio externo. 31. Tecnologia apropriada e viável deveria ser usada quando necessário para aprimorar a taxa de sucesso no currículo da escola e para ajudar na comunicação, mobilidade e aprendizagem. Auxílios técnicos podem ser oferecidos de modo mais econômico e efetivo se eles forem providos a partir de uma associação central em cada localidade, aonde haja know-how que possibilite a conjugação de necessidades individuais e assegure a manutenção. 32. Capacitação deveria ser originada e pesquisa deveria ser levada a cabo em níveis nacional e regional no sentido de desenvolver sistemas tecnológicos de apoio apropriados à educação especial. Estados que tenham ratificado o Acordo de Florença deveriam ser encorajados a usar tal instrumento no sentido de facilitar a livre circulação de materiais e equipamentos às necessidades das pessoas com deficiências. Da mesma forma, Estados que ainda não tenham aderido ao Acordo ficam convidados a assim fazê-lo para que se facilite a livre circulação de serviços e bens de natureza educacional e cultural. Administração da Escola 33. Administradores locais e diretores de escolas podem ter um papel significativo quanto a fazer com que as escolas respondam mais às crianças com necessidades educacionais especiais desde de que a eles sejam fornecidos a devida autonomia e adequado treinamento para que o possam fazê-lo. Eles (administradores e diretores) deveriam ser convidados a desenvolver uma administração com procedimentos mais flexíveis, a reaplicar recursos instrucionais, a diversificar opções de aprendizagem, a mobilizar auxílio individual, a oferecer apoio aos alunos experimentando dificuldades e a desenvolver relações com pais e comunidades, Uma administração escolar bem sucedida depende de um envolvimento ativo e reativo de professores e do pessoal e do desenvolvimento de cooperação efetiva e de trabalho em grupo no sentido de atender as necessidades dos estudantes. 34. Diretores de escola têm a responsabilidade especial de promover atitudes positivas através da comunidade escolar e via arranjando uma cooperação efetiva entre professores de classe e pessoal de apoio. Arranjos apropriados para o apoio e o exato papel a ser assumido pelos vários parceiros no processo educacional deveria ser decidido através de consultoria e negociação. 35. Cada escola deveria ser uma comunidade coletivamente responsável pelo sucesso ou fracasso de cada estudante. O grupo de educadores, ao invés de professores individualmente, deveria dividir a responsabilidade pela educação de crianças com necessidades especiais. Pais e voluntários deveriam ser convidados assumir participação ativa no trabalho da escola. Professores, no entanto, possuem um papel fundamental enquanto administradores do processo educacional, apoiando as crianças através do uso de recursos disponíveis, tanto dentro como fora da sala de aula. Informação e Pesquisa 36. A disseminação de exemplos de boa prática ajudaria o aprimoramento do ensino e aprendizagem. Informação sobre resultados de estudos que sejam relevantes também seria valiosa. A demonstração de experiência e o desenvolvimento de centros de informação deveriam receber apoio a nível nacional, e o acesso a fontes de informação deveria ser ampliado. 37. A educação especial deveria ser integrada dentro de programas de instituições de pesquisa e desenvolvimento e de centros de desenvolvimento curricular. Atenção especial deveria ser prestada nesta área, a pesquisa-ação locando em estratégias inovadoras de ensino-aprendizagem. professores deveriam participar ativamente tanto na ação quanto na reflexão envolvidas em tais investigações. Estudos-piloto e estudos de profundidade deveriam ser lançados para auxiliar tomadas de decisões e para prover orientação futura. Tais experimentos e estudos deveriam ser levados a cabo numa base de cooperação entre vários países. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL C. RECRUTAMENTO E TREINAMENTO DE EDUCADORES 38. Preparação apropriada de todos os educadores constitui-se um fator chave na promoção de progresso no sentido do estabelecimento de escolas inclusivas. As seguintes ações poderiam ser tomadas. Além disso, a importância do recrutamento de professores que possam servir como modelo para crianças portadoras de deficiências torna-se cada vez mais reconhecida. 39. Treinamento pré-profissional deveria fornecer a todos os estudantes de pedagogia de ensino primário ou secundário, orientação positiva frente à deficiência, desta forma desenvolvendo um entendimento daquilo que pode ser alcançado nas escolas através dos serviços de apoio disponíveis na localidade. O conhecimento e habilidades requeridas dizem respeito principalmente à boa prática de ensino e incluem a avaliação de necessidades especiais, adaptação do conteúdo curricular, utilização de tecnologia de assistência, individualização de procedimentos de ensino no sentido de abarcar uma variedade maior de habilidades, etc. Nas escolas práticas de treinamento de professores, atenção especial deveria ser dada à preparação de todos os professores para que exercitem sua autonomia e apliquem suas habilidades na adaptação do currículo e da instrução no sentido de atender as necessidades especiais dos alunos, bem como no sentido de colaborar com os especialistas e cooperar com os pais. 40. Um problema recorrente em sistemas educacionais, mesmo naqueles que provêem excelentes serviços para estudantes portadores de deficiências refere-se a falta de modelos para tais estudantes. alunos de educação especial requerem oportunidades de interagir com adultos portadores de deficiências que tenham obtido sucesso de forma que eles possam ter um padrão para seus próprios estilos de vida e aspirações com base em expectativas realistas. Além disso, alunos portadores de deficiências deveriam ser treinados e providos de exemplos de atribuição de poderes e liderança à deficiência de forma que eles possam auxiliar no modelamento de políticas que irão afetá-los futuramente. Sistemas educacionais deveriam, portanto, basear o recrutamento de professores e outros educadores que podem e deveriam buscar, para a educação de crianças especiais, o envolvimento de indivíduos portadores de deficiências que sejam bem sucedidos e que provenham da mesma região. 41. As habilidades requeridas para responder as necessidades educacionais especiais deveriam ser levadas em consideração durante a avaliação dos estudos e da graduação de professores. 42. Como formar prioritária, materiais escritos deveriam ser preparados e seminários organizados para administradores locais, supervisores, diretores e professores, no sentido de desenvolver suas capacidades de prover liderança nesta área e de aposta e treinar pessoal menos experiente. 43. O menor desafio reside na provisão de treinamento em serviço a todos os professores, levando-se em consideração as variadas e freqüentemente difíceis condições sob as quais eles trabalham. Treinamento em serviço deveria sempre que possível, ser desenvolvido ao nível da escola e por meio de interação com treinadores e apoiado por técnicas de educação à distância e outras técnicas auto-didáticas. 44. Treinamento especializado em educação especial que leve às qualificações profissionais deveria normalmente ser integrado com ou precedido de treinamento e experiência como uma forma regular de educação de professores para que a complementariedade e a mobilidade sejam asseguradas. 45. O Treinamento de professores especiais necessita ser reconsiderado com a intenção de se lhes habilitar a trabalhar em ambientes diferentes e de assumir um papel-chave em programas de educação especial. Uma abordagem não-categorizante que embarque todos os tipos de deficiências deveria ser desenvolvida como núcleo comum e anterior à especialização em uma ou mais áreas específicas de deficiência. 46. Universidades possuem um papel majoritário no sentido de aconselhamento no processo de desenvolvimento da educação especial, especialmente no que diz respeito à pesquisa, avaliação, preparação de formadores de professores e desenvolvimento de programas e materiais de treinamento. Redes de trabalho entre universidades e instituições de aprendizagem superior em países desenvolvidos e em desenvolvimento deveriam ser promovidas. A ligação entre pesquisa e treinamento neste sentido é de grande significado. Também é muito importante o envolvimento ativo de pessoas portadoras de deficiência em pesquisa e em treinamento pata que se assegure que suas perspectivas sejam completamente levadas em consideração. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL D. SERVIÇOS EXTERNOS DE APOIO 47. A provisão de serviços de apoio é de fundamental importância para o sucesso de políticas educacionais inclusivas. Para que se assegure que, em todos os níveis, serviços externos sejam colocados à disposição de crianças com necessidades especiais, autoridades educacionais deveriam considerar o seguinte: 48. Apoio às escolas regulares deveria ser providenciado tanto pelas instituições de treinamento de professores quanto pelo trabalho de campo dos profissionais das escolas especiais. Os últimos deveriam ser utilizados cada vez mais como centros de recursos para as escolas regulares, oferecendo apoio direto aquelas crianças com necessidades educacionais especiais. Tanto as instituições de treinamento como as escolas especiais podem prover o acesso a materiais e equipamentos, bem como o treinamento em estratégias de instrução que não sejam oferecidas nas escolas regulares. 49. O apoio externo do pessoal de recurso de várias agências, departamentos e instituições, tais como professor-consultor, psicólogos escolares, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, etc.., deveria ser coordenado em nível local. O agrupamento de escolas tem comprovadamente se constituído numa estratégia útil na mobilização de recursos educacionais bem como no envolvimento da comunidade. Grupos de escolas poderiam ser coletivamente responsáveis pela provisão de serviços a alunos com necessidades educacionais especiais em suas áreas e (a tais grupos de escolas) poderia ser dado o espaço necessário para alocarem os recursos conforme o requerido. Tais arranjos também deveriam envolver serviços não educacionais. De fato, a experiência sugere que serviços educacionais se beneficiariam significativamente caso maiores esforços fossem feitos para assegurar o ótimo uso de todo o conhecimento e recursos disponíveis. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL E. ÁREAS PRIORITÁRIAS 50. A integração de crianças e jovens com necessidades educacionais especiais seria mais efetiva e bem-sucedida se consideração especial fosse dada a planos de desenvolvimento educacional nas seguintes áreas: educação infantil, para garantir a educabilidade de todas as crianças: transição da educação para a vida adulta do trabalho e educação de meninas. Educação Infantil 51. O sucesso de escolas inclusivas depende em muito da identificação precoce, avaliação e estimulação de crianças pré- escolares com necessidades educacionais especiais. Assistência infantil e programas educacionais para crianças até a idade de 6 anos deveriam ser desenvolvidos e/ou reorientados no sentido de promover o desenvolvimento físico, intelectual e social e a prontidão para a escolarização. Tais programas possuem um grande valor econômico para o indivíduo, a família e a sociedade na prevenção do agravamento de condições que inabilitam a criança. Programas neste nível deveriam reconhecer o princípio da inclusão e ser desenvolvidos de uma maneira abrangente, através da combinação de atividades pré-escolares e saúde infantil. 52. Vários países têm adotado políticas em favor da educação infantil, tanto através do apoio no desenvolvimento de jardins de infância e pré-escolas, como pela organização de informação às famílias e de atividades de conscientização em colaboração com serviços comunitários (saúde, cuidados maternos e infantis) com escolas e com associações locais de famílias ou de mulheres. Preparação para a Vida Adulta 53. Jovens com necessidades educacionais especiais deveriam ser auxiliados no sentido de realizarem uma transição efetiva da escola para o trabalho. Escolas deveriam auxiliá-los a se tornarem economicamente ativos e provê-los com as habilidades necessárias ao cotidiano da vida, oferecendo treinamento em habilidades que correspondam às demandas sociais e de comunicação e às expectativas da vida adulta. Isto implica em tecnologias adequadas de treinamento, incluindo experiências diretas em situações da vida real, fora da escola. O currículo para estudantes mais maduros e com necessidades educacionais especiais deveria incluir programas específicos de transição, apoio de entrada para a educação superior sempre que possível e conseqüente treinamento vocacional que os prepare a funcionar independentemente enquanto membros contribuintes em suas comunidades e após o término da escolarização. Tais atividades deveria ser levadas a cabo com o envolvimento ativo de aconselhadores vocacionais, oficinas de trabalho, associações de profissionais, autoridades locais e seus respectivos serviços e agências. Educação de Meninas 54. Meninas portadoras de deficiências encontram-se em dupla desvantagem. Um esforço especial se requer no sentido de se prover treinamento e educação para meninas com necessidades educacionais especiais. Além de ganhar acesso a escola, meninas portadoras de deficiências deveriam ter acesso à informação, orientação e modelos que as auxiliem a fazer escolhas realistas e as preparem para desempenharem seus futuros papéis enquanto mulheres adultas. Educação de Adultos e Estudos Posteriores 55. Pessoas portadoras de deficiências deveriam receber atenção especial quanto ao desenvolvimento e implementação de programas de educação de adultos e de estudos posteriores. Pessoas portadoras de deficiências deveriam receber prioridade de acesso à tais programas. Cursos especiais também poderiam ser desenvolvidos no sentido de atenderem às necessidades e condições de diferentes grupos de adultos portadores de deficiência. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL F. PERSPECTIVAS COMUNITÁRIAS 56. A realização do objetivo de uma educação bem- sucedida de crianças com necessidades educacionais especiais não constitui tarefa somente dos Ministérios de Educação e das escolas. Ela requer a cooperação das famílias e a mobilização das comunidades e de organizações voluntárias, assim como o apoio do público em geral. A experiência provida por países ou áreas que têm testemunhado progresso na equalização de oportunidades educacionais para crianças portadoras de deficiência sugere uma série de lições úteis. Parceria com os Pais 57. A educação de crianças com necessidades educacionais especiais é uma tarefa a ser dividida entre pais e profissionais. Uma atitude positiva da parte dos pais favorece a integração escolar e social. Pais necessitam de apoio para que possam assumir seus papéis de pais de uma criança com necessidades especiais. O papel das famílias e dos pais deveria ser aprimorado através da provisão de informação necessária em linguagem clara e simples; ou enfoque na urgência de informação e de treinamento em habilidades paternas constitui uma tarefa importante em culturas aonde a tradição de escolarização seja pouca. 58. Pais constituem parceiros privilegiados no que concerne as necessidades especiais de suas crianças, e desta maneira eles deveriam, o máximo possível, ter a chance de poder escolher o tipo de provisão educacional que eles desejam para suas crianças. 59. Uma parceria cooperativa e de apoio entre administradores escolares, professores e pais deveria ser desenvolvida e pais deveriam ser considerados enquanto parceiros ativos nos processos de tomada de decisão. Pais deveriam ser encorajados a participar em atividades educacionais em casa e na escola (aonde eles poderiam observar técnicas efetivas e aprender como organizar atividades extra-curriculares), bem como na supervisão e apoio à aprendizagem de suas crianças. 60. Governos deveriam tomar a liderança na promoção de parceria com os pais, através tanto de declarações políticas quanto legais no que concerne aos direitos paternos. O desenvolvimento de associações de pais deveria ser promovida e seus representante envolvidos no delineamento e implementação de programas que visem o aprimoramento da educação de seus filhos. Organizações de pessoas portadoras de deficiências também deveriam ser consultadas no que diz respeito ao delineamento e implementação de programas. Envolvimento da Comunidade 61. A descentralização e o planejamento local favorecem um maior envolvimento de comunidades na educação e treinamento de pessoas com necessidades educacionais especiais. Administradores locais deveriam encorajar a participação da comunidade através da garantia de apoio às associações representativas e convidando-as a tomarem parte no processo de tomada de decisões. Com este objetivo em vista, mobilizando e monitorando mecanismos formados pela administração civil local, pelas autoridades de desenvolvimento educacional e de saúde, líderes comunitários e organizações voluntárias deveriam estar estabelecidos em áreas geográficas suficientemente pequenas para assegurar uma participação comunitária significativa. 62. O envolvimento comunitário deveria ser buscado no sentido de suplementar atividades na escola, de prover auxílio na concretização de deveres de casa e de compensar a falta de apoio familiar. Neste sentido, o papel das associações de bairro deveria ser mencionado no sentido de que tais forneçam espaços disponíveis, como também o papel das associações de famílias, de clubes e movimentos de jovens, e o papel potencial das pessoas idosas e outros voluntários incluindo pessoas portadoras de deficiências em programas tanto dentro como fora da escola. 63. Sempre que ação de reabilitação comunitária seja provida por iniciativa externa, cabe à comunidade decidir se o programa se tornará parte das atividades de desenvolvimento da comunidade. Aos vários parceiros na comunidade, incluindo organizações de pessoas portadoras de deficiência e outras organizações não-governamentais deveria ser dada a devida autonomia para se tornarem responsáveis pelo programa. Sempre que apropriado, agências governamentais em níveis nacional e local também deveriam prestar apoio. O Papel das Organizações Voluntárias 64. Uma vez que organizações voluntárias e não- governamentais possuem maior liberdade para agir e podem responder mais prontamente às necessidades expressas, elas deveriam ser apoiadas no desenvolvimento de novas idéias e no trabalho pioneiro de inovação de métodos de entrega de serviços. Tais organizações podem desempenhar o papel fundamental de inovadores e catalizadores e expandir a variedade de programas disponíveis à comunidade. 65. Organizações de pessoas portadoras de deficiências - ou seja, aquelas que possuam influência decisiva deveriam ser convidadas a tomar parte ativa na identificação de necessidades, expressando sua opinião a respeito de prioridades, administrando serviços, avaliando desempenho e defendendo mudanças. Conscientização Pública 66. Políticos em todos os níveis, incluindo o nível da escola, deveriam regularmente reafirmar seu compromisso para com a inclusão e promover atitudes positivas entre as crianças, professores e público em geral, no que diz respeito aos que possuem necessidades educacionais especiais. 67. A mídia possui um papel fundamental na promoção de atitudes positivas frente a integração de pessoas portadoras de deficiência na sociedade. Superando preconceitos e má informação, e difundindo um maior otimismo e imaginação sobre as capacidades das pessoas portadoras de deficiência. A mídia também pode promover atitudes positivas em empregadores com relação ao emprego de pessoas portadoras de deficiência. A mídia deveria acostumar-se a informar o público a respeito de novas abordagens em educação, particularmente no que diz respeito à provisão em educação especial nas escolas regulares, através da popularização de exemplos de boa prática e experiências bem-sucedidas. - II. LINHAS DE AÇÃO EM NÍVEL NACIONAL G. REQUERIMENTOS RELATIVOS A RECURSOS 68. O desenvolvimento de escolas inclusivas como o modo mais efetivo de atingir a educação para todos deve ser reconhecido como uma política governamental chave e dado o devido privilégio na pauta de desenvolvimento da nação. É somente desta maneira que os recursos adequados podem ser obtidos. Mudanças nas políticas e prioridades podem acabar sendo inefetivas a menos que um mínimo de recursos requeridos seja providenciado. O compromisso político é necessário, tanto a nível nacional como comunitário. Para que se obtenha recursos adicionais e para que se re-empregue os recursos já existentes. Ao mesmo tempo em que as comunidades devem desempenhar o papel- chave de desenvolver escolas inclusivas, apoio e encorajamento aos governos também são essenciais ao desenvolvimento efetivo de soluções viáveis. 69.A distribuição de recursos às escolas deveria realisticamente levar em consideração as diferenças em gastos no sentido de se prover educação apropriada para todas as crianças que possuem habilidades diferentes. Um começo realista poderia ser o de apoiar aquelas escolas que desejam promover uma educação inclusiva e o lançamento de projetos-piloto em algumas áreas com vistas a adquirir o conhecimento necessário para a expansão e generalização progressivas. No processo de generalização da educação inclusiva, o nível de suporte e de especialização deverá corresponder à natureza da demanda. 70. Recursos também devem ser alocados no sentido de apoiar serviços de treinamento de professores regulares de provisão de centros de recursos, de professores especiais ou professores-recursos. Ajuda técnica apropriada para assegurar a operação bem-sucedida de um sistema educacional integrador, também deve ser providenciada. Abordagens integradoras deveriam, portanto, estar ligadas ao desenvolvimento de serviços de apoio em níveis nacional e local. 71. Um modo efetivo de maximizar o impacto refere-se a união de recursos humanos institucionais, logísticos, materiais e financeiros dos vários departamentos ministeriais (Educação, Saúde, Bem- Estar-Social, Trabalho, Juventude, etc.), das autoridades locais e territoriais e de outras instituições especializadas. A combinação de uma abordagem tanto social quanto educacional no que se refere à educação especial requererá estruturas de gerenciamento efetivas que capacitem os vários serviços a cooperar tanto em nível local quanto em nível nacional e que permitam que autoridades públicas e corporações juntem esforços. III. ORIENTAÇÕES PARA AÇÕES EM NÍVEIS REGIONAIS E INTERNACIONAIS 72. Cooperação internacional entre organizações governamentais e não-governamentais, regionais e inter-regionais, podem ter um papel muito importante no apoio ao movimento frente a escolas inclusivas. Com base em experiências anteriores nesta área, organizações internacionais, inter-governamentais e não-governamentais, bem como agências doadoras bilaterais, poderiam considerar a união de seus esforços na implementação das seguintes abordagens estratégicas. 73. Assistência técnica deveria ser direcionada a áreas estratégicas de intervenção com um efeito multiplicador, especialmente em países em desenvolvimento. Uma tarefa importante para a cooperação internacional reside no apoio no lançamento de projetos-piloto que objetivem testar abordagens e originar capacitação. 74. A organização de parcerias regionais ou de parcerias entre países com abordagens semelhantes no tocante à educação especial poderia resultar no planejamento de atividades conjuntas sob os auspícios de mecanismos de cooperação regional ou sub-regional. Tais atividades deveriam ser delineadas com vistas a levar vantagens sobre as economias da escala, a basear-se na experiência de países participantes, e a aprimorar o desenvolvimento das capacidades nacionais. 75. Uma missão prioritária das organizações internacionais e facilitação do intercâmbio de dados e a informação e resultados de programas-piloto em educação especial entre países e regiões. O colecionamento de indicadores de progresso que sejam comparáveis a respeito de educação inclusiva e de emprego deveria se tornar parte de um banco mundial de dados sobre educação. Pontos de enfoque podem ser estabelecidos em centros sub-regionais para que se facilite o intercâmbio de informações. As estruturas existentes em nível regional e internacional deveriam ser fortalecidas e suas atividades estendidas a campos tais como política, programação, treinamento de pessoal e avaliação. 76. Uma alta percentagem de deficiência constitui resultado direto da falta de informação, pobreza e baixos padrões de saúde. À medida que o prevalecimento de deficiências em termos do mundo em geral aumenta em número, particularmente nos países em desenvolvimento, deveria haver uma ação conjunta internacional em estreita colaboração com esforços nacionais, no sentido de se prevenir as causas de deficiências através da educação a qual, por, sua vez, reduziria a incidência e o prevalecimento de deficiências, portanto, reduzindo ainda mais as demandas sobre os limitados recursos humanos e financeiros de dados países. 77. Assistências técnica e internacional à educação especial derivam-se de variadas fontes. Portanto, torna-se essencial que se garanta coerência e complementaridade entre organizações do sistema das Nações Unidas e outras agências que prestam assistência nesta área. 78. Cooperação internacional deveria fornecer apoio a seminários de treinamento avançado para administradores e outros especialistas em nível regional e reforçar a cooperação entre universidades e instituições de treinamento em países diferentes para a condução de estudos comparativos bem como para a publicação de referências documentárias e de materiais instrutivos. 79. A Cooperação internacional deveria auxiliar no desenvolvimento de associações regionais e internacionais de profissionais envolvidos com o aperfeiçoamento da educação especial e deveria apoiar a criação e disseminação de folhetins e publicações, bem como a organização de conferências e encontros regionais. 80. Encontros regionais e internacionais englobando questões relativas à educação deveriam garantir que necessidades educacionais especiais fossem incluídas como parte integrante do debate, e não somente como uma questão em separado. Como modo de exemplo concreto, a questão da educação especial deveria fazer parte da pauta de conferência ministeriais regionais organizadas pela UNESCO e por outras agências inter-governamentais. 81. Cooperação internacional técnica e agências de financiamento envolvidas em iniciativas de apoio e desenvolvimento da Educação para Todos deveriam assegurar que a educação especial seja uma parte integrante de todos os projetos em desenvolvimento. 82. Coordenação internacional deveria existir no sentido de apoiar especificações de acessibilidade universal da tecnologia da comunicação subjacente à estrutura emergente da informação. 83. Esta Estrutura de Ação foi aprovada por aclamação após discussão e emenda na sessão Plenária da Conferência de 10 de junho de 1994. Ela tem o objetivo de guiar os Estados Membros e organizações governamentais e não-governamentais na implementação da Declaração de Salamanca sobre Princípios , Política e Prática em Educação Especial. Procedimentos-Padrões das Nações Unidas para a Equalização de Oportunidades para Pessoas Portadoras de Deficiências, A/RES/48/96, Resolução das Nações Unidas adotada em Assembléia Geral.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA

DIREITOS DA CRIANÇA 1ª PARTE

DIREITOS DA CRIANÇA 2ª PARTE

DIREITOS DA CRIANÇA 3ª PARTE

DIREITOS DA CRIANÇA 4ª PARTE

Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos

487 7 - Educar em direitos humanos, o desafio da formação dos educadores numa perspectiva interdisciplinar - Celma Tavares Só se educa em direitos humanos quem se humaniza e só é possível investir completamente na humanização a partir de uma conduta humanizada. Ricardo Ballestreri Introdução A Educação em Direitos Humanos (EDH) é, na atualidade, um dos mais importantes instrumentos dentro das formas de combate às violações de direitos humanos, já que educa na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios democráticos. Mas a sua inserção nos vários âmbitos do saber requer a compreensão do seu significado e da sua práxis. No campo da educação formal, é igualmente necessário estar atento às metodologias que lhe são compatíveis e às possibilidades de que ela possa permear os conteúdos de todas as disciplinas, dentro de uma visão interdisciplinar. Neste sentido, a formação de educadores que estejam aptos a trabalhar a EDH, é o primeiro passo para sua implementação. Ela deve passar pelo aprendizado dos conteúdos específicos de direitos humanos, mas deve especialmente estar relacionada à coerência das ações e atitudes tomadas no dia-a-dia. Sem esta coerência, o discurso fica desarticulado da prática e deslegitima o elemento central da EDH: a ética. Por outro lado, também é preciso ter a consciência de que a formação é o estágio inicial, mas que o processo educativo em direitos humanos é contínuo. Sua finalidade maior é a constituição de uma cultura de direitos humanos e, nesta perspectiva, está sempre em renovação. É a educação em direitos humanos que permite a afirmação de tais direitos e que prepara cidadãos e cidadãs conscientes de seu papel social na luta contra as desigualdades e injustiças. Abordar as questões relacionadas a este processo de conscientização e à construção do saber nesta área é o principal objetivo deste trabalho, que centra seu foco na( Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos ) formação dos educadores em direitos humanos a partir de uma perspectiva interdisciplinar. O processo educativo em direitos humanos A educação em direitos humanos é um campo recente tanto no contexto brasileiro como no latino-americano, apesar de vários documentos internacionais já tratarem sobre a necessidade de sua implementação. Relatório do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, sobre o tema, aponta que, desde a Declaração Universal e, mais especificamente, no Protocolo Adicional à Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, o direito à educação em direitos humanos faz parte do direito à educação. (INSTITUTO INTERAMERICANO..., 2000, p. 6). Nesta perspectiva, identifica-se uma relação intrínseca entre ambas. A educação é o caminho para qualquer mudança social que se deseje realizar dentro de um processo democrático. A educação em direitos humanos, por sua vez, é o que possibilita sensibilizar e conscientizar as pessoas para a importância do respeito ao ser humano, apresentando-se na atualidade, como uma ferramenta fundamental na construção da formação cidadã, assim como na afirmação de tais direitos. Magendzo (2006, p. 23) a define como a prática educativa que se funda no reconhecimento, na defesa e no respeito e promoção dos direitos humanos e que tem por objeto desenvolver nos indivíduos e nos povos suas máximas capacidades como sujeito de direitos e proporcionar as ferramentas e elementos para fazê-los efetivos. A finalidade maior da EDH, portanto, é a de atuar na formação da pessoa em todas as suas dimensões a fim de contribuir ao desenvolvimento de sua condição de cidadão e cidadã, ativos na luta por seus direitos, no cumprimento de seus deveres e na fomentação de sua humanidade. Dessa forma, uma pessoa que goza de uma educação neste âmbito, é capaz de atuar frente às injustiças e desigualdades, reconhecendo-se como sujeito autônomo e, ademais, reconhecendo o outro com iguais direitos, dentro (489 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) dos preceitos de diversidade e tolerância, valorizando assim a convivência harmoniosa, o respeito mútuo e a solidariedade. Através da EDH, é possível contribuir para reverter as injustificadas diferenciações sociais do país e criar uma nova cultura a partir do entendimento de que toda e qualquer pessoa deve ser respeitada em razão da dignidade que lhe é inerente. Pois a dignidade é um valor absoluto que o ser humano possui por constituir-se em um fim em si mesmo e não em um meio. (KANT, 1989). É igualmente por meio dessa educação que se pode começar a mudar as percepções sociais radicais, discriminatórias e violentas, na maioria das vezes, legitimadoras das violações de direitos humanos. E reconstruir as crenças e valores sociais fundamentados no respeito ao ser humano e em conformidade com os preceitos democráticos e as regras do Estado de Direito. (TAVARES, 2006). A relevância da educação em direitos humanos pode ser mensurada através dos documentos da ONU sobre o tema como, por exemplo, o Decênio das Nações Unidas para a Educação na Esfera dos Direitos Humanos (1995-2004) ou o Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos, aprovado no final de 2004. Este Programa está estruturado em fases sucessivas, com sua primeira etapa guiada por um plano de ação para 2005-2007. O Programa estabelece que a EDH deve fortalecer o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais; desenvolver plenamente a personalidade humana e o sentido da dignidade do ser humano; promover a compreensão, a tolerância e a igualdade; facilitar a participação efetiva de todos numa sociedade livre e democrática, na qual impere o Estado de Direito; fomentar e manter a paz e promover o desenvolvimento sustentável centrado nas pessoas e na justiça social. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 4-5). Ainda de acordo com o referido Programa, este tipo de educação deve contribuir para: a) criar uma cultura universal dos direitos humanos; b) exercitar o respeito, tolerância, promoção e valorização da diversidade religiosa, de gênero, de orientação sexual e cultural, e a amizade entre as nações, povos indígenas e grupos étnico-raciais;490 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos c) possibilitar a todas as pessoas terem acesso à participação efetiva em uma sociedade livre. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 5). Anteriormente, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, por meio da Declaração de Viena, de 1993, já tinha indicado sua importância, ao considerar que “a educação, a capacitação e a informação pública em direitos humanos são indispensáveis para estabelecer e promover relações estáveis e harmoniosas entre as comunidades e para fomentar a compreensão mútua, a tolerância e a paz”. (NACIONES UNIDAS, 1993). No Brasil, o campo normativo relacionado aos direitos humanos e a educação nesta área se incorporam nos seguintes documentos: a Constituição Federal (1988), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (1996), os Parâmetros Curriculares da Educação (a partir de 1997), o Programa Nacional de Direitos Humanos (na sua primeira versão, em 1996 e segunda versão, em 2002) e o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (também com duas versões, 2003 e 2006). Estes documentos estabelecem as diretrizes e ações direcionadas à formação cidadã. Entretanto, para a construção dessa formação através da EDH, é preciso desenvolver uma prática pedagógica coerente e articulada com seus valores. Esta prática, segundo Nascimento (2000, p.121), oferece “a possibilidade de aprofundar a consciência de sua própria dignidade, a capacidade de reconhecer o outro, de vivenciar a solidariedade, a partilha, a igualdade na diferença e a liberdade”, criando canais de participação e organização que fomentem o exercício efetivo da cidadania e a tomada de decisões coletivas. Este tipo de prática pedagógica deve promover o empoderamento individual e coletivo, com o objetivo de ampliar os espaços de poder e a participação de todos, em especial, dos grupos sociais excluídos e vulneráveis. Para Sacavino (2000, p.46-47), uma educação que promova esse empoderamento, pode fomentar as capacidades dos atores e direcioná-las ao desencadeamento de processos de democratização e de transformação. Portanto, a EDH busca promover processos educativos que sejam críticos e ativos e que despertem a consciência das pessoas para as suas responsabilidades como cidadão/cidadã e para a atuação em consonância (491 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) com o respeito ao ser humano. Educar dentro de um processo crítico-ativo significa modificar as atitudes, as condutas e as convicções, mas não pela imposição dos valores e sim por meios democráticos de construção e de participação que busquem possibilitar a experiência cotidiana desses direitos. De acordo com Morgado, (2001) a prática pedagógica da EDH está pautada no que ela chama de saber docente dos direitos humanos - um conjunto de saberes específicos necessários à prática do educador em direitos humanos. Esse saber, por sua vez, relaciona-se a outros três: o saber curricular, o saber pedagógico e o saber experencial. O primeiro aponta a necessidade de que o currículo seja flexível para adequar-se aos conteúdos de direitos humanos. O segundo corresponde às estratégias e aos recursos utilizados para articular conteúdos curriculares à transversalidade dos direitos humanos. E o último destaca que a vivência desses direitos e a coerência com sua promoção e defesa são essenciais. Dessa forma, é imperioso trabalhar com uma metodologia que articule os três níveis de saberes. Esta metodologia deve incluir uma prática pedagógica que possibilite a percepção da realidade, sua análise e uma postura crítica frente a ela, incluindo duas dimensões essenciais: a emancipadora e a transformadora. Através delas, é possível sensibilizar, indignar-se, atuar e comprometer-se. A formação dos educadores em direitos humanos deve privilegiar as metodologias ativas e participativas de forma a envolver e despertar o interesse, sem esquecer que contextos específicos carecem de abordagens próprias para cada um deles. É necessário estabelecer processos que articulem teoria e conduta, que estimulem o compromisso com os vários níveis das práticas sociais e que favoreçam a sensibilização, a análise e a compreensão da realidade. É a realidade – a educativa e a social – que deve pautar todas as ações de construção desse processo cujo objetivo maior é a afirmação de uma cultura de direitos humanos. Esta é uma premissa para que o saber docente em direitos humanos se articule com os demais saberes socialmente produzidos. Em síntese, a EDH requer uma metodologia, com a seleção e organização dos conteúdos e atividades, materiais e recursos didáticos, que sejam condizentes com a finalidade de um processo educativo em direitos humanos. Estes requisitos são essenciais para que a prática pedagógica ( 492 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) facilite a formação de uma consciência crítica e de um compromisso social com as questões relacionadas à problemática dos direitos humanos. A socialização em uma cultura de direitos humanos A educação em direitos humanos, além de todo processo de formação em seus conteúdos, pretende a socialização dos valores e princípios que lhe são intrínsecos, com o fim de construir e consolidar uma cultura de direitos humanos. Neste caminho, a dita socialização busca envolver todas as pessoas na vivência e no respeito a tais direitos. Esse objetivo vem demarcado no último documento da ONU nesta área, onde a EDH é sinônimo do “conjunto das atividades de capacitação e difusão orientadas a criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos”. (NACIONES UNIDAS, 2007, p. 4). A importância de estabelecer os direitos humanos como uma cultura na sociedade brasileira decorre da estrutura social existente, em que os fortes traços do colonialismo e da escravidão, presentes durante vários séculos, ainda encontram ressonância e alimentam o autoritarismo, a discriminação, a exclusão e o preconceito atuais. Somente quando os direitos humanos passarem a fazer parte do cotidiano de todas as pessoas e se constituam de fato numa cultura, será possível a generalização e perpetuação de crenças, valores, conhecimentos, práticas e atitudes que priorizem o ser humano. É por isso que a EDH deve estar orientada para a plena realização da pessoa, o sentido da dignidade e o fortalecimento dos direitos e liberdades fundamentais, assim como para a promoção da justiça e da paz. Com estes elementos, é possível orientar uma vivência democrática e cidadã de respeito integral ao ser humano. Dentro deste contexto, é fundamental definir o entendimento de democracia, cidadania e direitos humanos que farão parte das estratégias de desenvolvimento de uma educação nessa área. A democracia está fundada nos princípios de liberdade e igualdade e nos ideais de tolerância, de não violência e de irmandade. (BOBBIO, 1985). Por isso, é o regime que dispõe das melhores condições para o exercício da cidadania e do respeito aos direitos humanos. E é também (493 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) onde o Estado de Direito e o funcionamento das instituições do Estado podem chegar a encontrar seu equilíbrio. A cidadania é entendida como a reivindicação de direitos e o exercício das responsabilidades referentes a um poder específico, logicamente, dentro de uma perspectiva de cidadania ativa e participativa e não meramente formal. (GARRETÓN, 1999) Os direitos humanos, por sua vez, constituem prerrogativas básicas do ser humano, construídas historicamente, que concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas e que devem fazer parte do direito positivo dos Estados, apesar de não perderem a legitimação de sua exigibilidade pela ausência de sua inserção no arcabouço jurídico. É neste cenário que a formação cidadã encontra espaço para se ampliar e o exercício da cidadania surge como ponto de apoio num possível ciclo de avanços democráticos e de respeito aos direitos fundamentais. Contudo, é necessário pensar nas estratégias educacionais que sejam eficazes para impulsionar a socialização em uma cultura de direitos humanos. O primeiro passo para isso é entender o processo da ação perceptiva e considerar as representações sociais existentes sobre o tema. A percepção social pode ser definida como a forma com a qual uma pessoa infere as características e intenções de outra e do contexto onde está inserida. Na maioria das vezes, temos mais coisas por perceber do que a capacidade para registrá-las. Como dispomos de limitações de atenção e memória imediatas, realizamos três ações durante o ato de perceber: primeiro, limitamos a seleção da atenção; segundo, recodificamos os acontecimentos de forma a simplificá-los; terceiro, utilizamos ajudas tecnológicas para ampliar o processo cognitivo. (BRUNNER, 1984, p. 144-145). Ao perceber, também categorizamos. O ato de classificar responde à necessidade de inferir de acordo com certas pautas que aprendemos a usar. Em outras palavras, os critérios pelos quais classificamos uma situação, derivam do que aprendemos no processo de socialização. Esta categorização está cheia de conceitos sociais, elaborados na interação entre as pessoas, que simbolizam crenças, sentimentos e valores socialmente apreendidos e aceitos. É assim que, ao classificar e assimilar esta classificação, as idéias preconcebidas sobre os indivíduos e grupos acabam abrindo espaço para (494 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) que os estereótipos e os preconceitos se consolidem e gerem condutas negativas. Por outro lado, é relevante compreender que estas condutas não são automáticas nem lineares e dependem tanto de fatores pessoais como de contextos sociais e legais para se efetivarem. O que significa dizer que também é necessária a existência de um contexto propício para esta efetivação. No tocante às representações sociais, entendidas como a proposta de uma determinada interpretação do que existe e do que acontece, em lugar de outras possíveis, Martin Serrano (1993) considera que é importante não desconsiderar a persistência da parte de um imaginário social com conotações negativas em relação aos direitos humanos. Esse imaginário se alimenta da falta de uma real compreensão do significado desses direitos e da correlação de responsabilidade que foi estabelecida entre sua defesa e o aumento da criminalidade violenta. Apesar de que parece haver uma melhora quanto a esta questão, este imaginário continua encontrando respaldo social, especialmente, nos casos de violência delitiva de grande repercussão. Por isso, para trabalhar a socialização na perspectiva de desenvolvimento de uma nova cultura que tenha o ser humano e sua dignidade como foco e que prime pela construção de uma sociedade inclusiva, é necessário abrir o campo perceptivo do educador e reeducar essa percepção de forma a despertar o interesse e a crítica diante dos acontecimentos. (HORTA, 2000, p.129-130). Essas representações sociais negativas sobre os direitos humanos devem ser igualmente discutidas e reformuladas a partir de uma formação que possibilite a compreensão de que todas as pessoas devem ter assegurada a preservação de sua dignidade e de sua humanidade, a fim de evitar que se confundam os sentimentos de justiça com os de vingança pessoal. Esta formação deve corresponder aos preceitos e valores plasmados pela comunidade internacional, nos diversos documentos de defesa e promoção dos direitos humanos, sendo imprescindível que o educador conheça, experimente e saiba socializar tais preceitos e valores. Neste ponto, apresenta-se como condição primordial que a percepção e as representações sociais, nesse âmbito, sejam consideradas durante a elaboração dos currículos e dos conteúdos que insiram a perspectiva dos direitos humanos e a definição da metodologia e da (495 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) prática pedagógica condizentes com este tipo de educação. Esta condição é significativa tanto para que se incluam as demandas existentes como para que a cultura baseada nestes direitos seja interiorizada e vivenciada, pois o êxito na formação do educador em direitos humanos depende, também, do olhar e das representações que ele possui sobre o tema. O papel da escola e dos espaços de educação não-formal No contexto brasileiro, a EDH vem tendo, historicamente, uma maior inserção nos espaços de educação não-formal, dentro dos movimentos sociais, das associações civis e das organizações não governamentais. Nesse campo, as atividades a ela relacionadas se desenvolvem através da construção do conhecimento em educação popular e do processo de participação em ações coletivas. Estas práticas educativas não formais trabalham a reflexão, estimulam o conhecimento e a atuação para os problemas e as condições de vida, articulando as dimensões dos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais. É preciso explorar todo o potencial existente nas ações das organizações não governamentais, das associações de moradores, dos clubes de mães, entre outras, que atuam na promoção dos direitos humanos no dia-a-dia, pois é inegável o papel que elas possuem na formação em direitos humanos. Como também facilitar o intercambio dos conhecimentos e iniciativas desenvolvidas com a finalidade de agregar este setor e possibilitar a realização de um trabalho coeso. As experiências nessa área são inúmeras e vêm acontecendo desde a década de 80, proporcionando a difusão da EDH frente à ausência, ainda existente, da incorporação destes conteúdos no ensino formal. Portanto, a contribuição desses espaços, na construção de uma cultura de direitos humanos, é de grande relevância e tem que ser sempre considerada dentro das estratégias de ampliação nessa área da educação no país. Por outro lado, apesar da EDH não ser tarefa exclusiva da escola, ocorrendo nos diversos campos de formação e convivência, no âmbito da educação formal identificam-se um conjunto de oportunidades para a disseminação dos conteúdos relacionados aos direitos humanos, assim como para a socialização dos valores(.496 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) O primeiro passo neste sentido é pensar na função da escola dentro dessa missão. Assim sendo, é fundamental redefinir seu perfil e considerar o fato de que a organização escolar não é neutra. De acordo com Silva (2000, p.16), “é necessária a construção de um projeto pedagógico democrático e participativo, onde a formação do sujeito possa ser assumida coletivamente”. A autora igualmente afirma que um projeto de escola que tenha como compromisso a formação em direitos humanos, deve considerar os seguintes elementos: a educação formal é condição essencial à formação da cidadania e tem na escola seu lugar privilegiado; a escola tem que cumprir, de fato, seu papel e função social, enquanto espaço de elaboração e socialização do conhecimento; a educação em direitos humanos deve ser um projeto global da escola; o desenvolvimento de um processo de conscientização dos direitos e deveres deve ser contínuo e permanente. (SILVA, 1997, p.220-221). Conforme análise de Candau (1996, p.14-15), uma proposta metodológica inspirada nesta perspectiva entende que “a escola deveria exercer um papel de humanização a partir da socialização e da construção de conhecimentos e de valores necessários à conquista do exercício pleno da cidadania”. Como a EDH se dá no dia-a-dia, nas diversas situações e relações cotidianas, é preciso haver um compromisso com os direitos humanos e o desenvolvimento de uma prática pedagógica democrática. Da mesma forma, é necessário que o educador não seja um mero transmissor dos conteúdos formais e sim que: a) acredite no que faz, pois sem a convicção de que o respeito aos direitos humanos é fundamental para todos, não é possível despertar os mesmos sentimentos nos demais; b) eduque com o exemplo, porque de nada adianta ter um discurso desconectado da prática ou ser incoerente exigindo aos demais determinadas atitudes que a própria pessoa não cumpre; c) desenvolva uma consciência crítica com relação à realidade e um compromisso como as transformações sociais, já que os propósitos deste tipo de educação é a de formar sujeitos ativos que lutam pelo respeito aos direitos de todos. A EDH, em síntese, necessita estar em conformidade com os princípios e valores que dignifiquem o ser humano e deve ter sua práxis e conteúdos pautados no respeito a tais direitos, assim como na capacidade (497 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) de se indignar frente às injustiças e atos desumanos e de atuar para reverter estas situações. Pensando na prática pedagógica em direitos humanos, Magendzo (2006, p.67-70) lista alguns princípios relacionados com os aspectos conceituais de dita prática. O primeiro deles é o princípio da integração, que defende que os temas e conteúdos de direitos humanos fazem parte integral dos conteúdos e atividades do currículo e dos programas de estudo. O segundo é o princípio da recorrência, onde o aprendizado em direitos humanos é obtido na medida em que é praticado uma e outra vez em circunstâncias diferentes e variadas. O princípio seguinte é o da coerência, pois o êxito do aprendizado é reforçado quando se cria um ambiente propício para seu desenvolvimento. A coerência entre o que se diz e o que se faz, é parte importante neste ambiente. O quarto princípio é o da vida cotidiana. Como a EDH está estreitamente vinculada com a multiplicidade de situações da vida cotidiana, é importante que o educador resgate essas situações e momentos em que os direitos humanos estão em jogo. O princípio da construção coletiva do conhecimento aparece como o quinto, e vem enfatizar a importância de que as pessoas analisem, grupalmente, a informação recebida sobre direitos humanos e deixem de ser meros receptores passivos e se tornem produtores de conhecimento. O último princípio é o da apropriação. Através dele, a pessoa se apropria do discurso recebido e o recria, ou seja, reelabora as várias mensagens e as traduz num discurso próprio, do qual toma plena consciência e que orienta as atuações da sua vida. Considerando a educação formal ou a não-formal para o desenvolvimento da EDH, o principal é que as práticas educacionais utilizadas sejam dialógicas e participativas, e que a vivência dos direitos humanos penetre no cotidiano desses ambientes de forma a proporcionar não apenas o saber pedagógico, mas, sobretudo, o saber experencial.(498 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) A formação dos educadores articulada com uma educação em direitos humanos interdisciplinar e multidimensional. A formação do educador em direitos humanos depende tanto de uma prática pedagógica condizente com o respeito ao ser humano como de uma educação que privilegie a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade que envolve a temática. Esses aspectos representam uma nova postura diante do conhecimento, possibilitando uma ação educativa capaz de ampliar as capacidades, desenvolver a consciência crítica diante da informação e priorizar a interação e participação de forma democrática. O foco, portanto, valoriza o que é construído e não simplesmente transmitido. De acordo com Fazenda (1979, p.39), a interdisciplinaridade “é uma relação de reciprocidade, de mutualidade”, além disso, é um processo que possibilita o diálogo. Andrade (1989, p.10), por sua vez, a conceitua como “a busca teórica e epistemológica de um avanço do conhecimento, a partir dessas conquistas fundamentais, que, de um campo do saber a outro, podem circular com fecundação mútua”. A interdisciplinaridade, que busca o equilíbrio entre a análise fragmentada e a síntese simplificadora, é essencial nas atividades relacionadas aos direitos humanos, porque a formação, nesse âmbito, necessita articular as várias esferas do conhecimento de modo a perpassar todos os seus níveis e conteúdos com a finalidade de possibilitar o olhar para o mesmo objeto sob perspectivas diferentes. Para Gadotti (1999, p.2-3), a metodologia de trabalho interdisciplinar implica em: integração de conteúdos; passar de uma concepção fragmentária para uma concepção unitária do conhecimento; superar a dicotomia entre ensino e pesquisa, considerando o estudo e a pesquisa a partir da contribuição das diversas ciências; e realizar o ensino-aprendizagem centrado numa visão de que aprendemos ao longo da vida. Estes elementos permitem compreender que um trabalho interdisciplinar demanda a superação de que uma única visão, explicação ou conteúdo é suficiente. No campo dos direitos humanos, como nos demais campos do saber, é a multiplicidade de temas, de articulações, de conteúdos que possibilita um processo educativo plural e completo(.499 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) Da mesma maneira, a formação em direitos humanos demanda englobar diferentes dimensões que devem complementar-se com o fim de abarcar o conhecimento desde distintas percepções. Neste ponto, reside a importância de uma formação que aborde a educação em direitos humanos como multidimensional, tentando relacionar diferentes dimensões que devem ser trabalhadas em conjunto. (HORTA, 2000, p.129). O que se busca com a ação pedagógica, através da interdisciplinaridade e de uma abordagem multidimensional, é a tentativa de superação de uma postura isolada e alienada e a formação do sujeito social a partir da vivência de uma realidade global e participativa. Pensar na interdisciplinaridade e nas múltiples dimensões da EDH significa assegurar que os conteúdos relacionados aos direitos humanos estejam presentes tanto no currículo manifesto – planos, programas e textos de estudos – como no currículo oculto. (MAGENDZO, 2006, p.35). Isso significa que, além do interesse pelos objetivos e conteúdos das distintas áreas do aprendizado, também existe a preocupação de que a EDH esteja presente em todos os níveis da prática pedagógica. Neste contexto, o que fica claro, é que uma área como a dos direitos humanos, por sua relevância e pela amplitude de conteúdos teóricos e práticos que são de sua competência, não é condizente com outra forma de abordagem que não seja a interdisciplinar e a multidimensional. Como busca a formação cidadã, a EDH tem que estar em interação com todas as áreas do conhecimento e a interdisciplinaridade e a multidimensionalidade são recursos que se completam e que têm a finalidade de ampliar as inúmeras possibilidades de interface do conhecimento, possibilitando, ao mesmo tempo, a autonomia e a interação. É através delas que um processo educativo em direitos humanos ultrapassa os limites da simples descrição da realidade e passa a mobilizar as competências cognitivas para auxiliar nas análises, deduções e inferências. Ao mesmo tempo que fomenta a explicação, a compreensão e a intervenção. A formação do educador em direitos humanos, para ser completa, tem que partir dessas premissas. Não pode estar atrelada a uma estrutura fechada de produção do conhecimento. Então, por que não privilegiar a interdisciplinaridade e a abordagem multidimensional na EDH se elas proporcionam as melhores condições para a formação nesta área?( 500 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) Qualquer dificuldade que possa existir nesse sentido, merece a pena ser superada pelo resultado que será alcançado. Claro que isso requer um aprendizado por parte dos educadores, o reaprender a olhar, a articular, a construir junto. Mas as resistências e problemas que podem ocorrer nesse caminho não devem servir de argumento para o desânimo ou a rejeição. O educador em direitos humanos tem diante de si uma responsabilidade imensa. Primeiro, de educar-se a si mesmo e depois, de educar aos demais na tolerância, no respeito, na compreensão da diferença. Segundo, de atuar democraticamente e com persistência para que o compromisso com as transformações sociais, necessárias para reverter às injustiças e desigualdades, possa chegar a ser o horizonte de todos. Conclusões Educar em direitos humanos significa ter a vida cotidiana como referência contínua. É um aprendizado que não ocorre de forma pontual ou isolada, mas que, sistematicamente, faz parte da ação educacional. Por isso, é importante a elaboração de abordagens condizentes com este tipo de educação, que possam contribuir para seu exercício. O ponto de partida deve ser o de uma pedagogia crítica, que articule os saberes docentes em direitos humanos e que oportunize aos educadores uma ampla gama de opções, de observações, de análises, de descobertas. É preciso consolidar o aprendizado pela vivência, fazer do exercício cotidiano da cidadania uma prioridade. Como uma das finalidades da EDH é despertar a responsabilidade com a defesa do respeito ao ser humano, é fundamental sensibilizar e fomentar o compromisso. A formação nesta perspectiva deve propiciar ao educador o conhecimento e a experiência em direitos humanos, mas, sobretudo, oportunizar a socialização dos preceitos e valores relacionados a essa área. O enfoque deve passar pela abordagem interdisciplinar e multidimensional como forma de estabelecer um diálogo com os demais conteúdos e níveis do conhecimento. Uma formação em EDH que não dê preferência a esta questão, será incapaz de romper com as representações (501 Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-metodológicos) e percepções prévias e proporcionar aos educadores um outro olhar sobre o qual assentar sua prática. É fundamental educar na tolerância, na valorização da dignidade e nos princípios democráticos; construir uma nova cultura que tenha como centro o ser humano. Este é um desafio no qual a contribuição dos educadores em direitos humanos é inestimável. Por isso sua própria formação deve, desde o princípio, corresponder a estes valores que se pretende socializar. Igualmente, é preciso não perder a perspectiva da coerência entre o discurso e as atitudes tomadas no dia-a-dia. O horizonte será sempre o mesmo: o respeito ao ser humano e a sua dignidade. Mas a construção desse horizonte depende do grau de envolvimento e disposição que pode haver em cada um. Oportunizar, portanto, a formação do educador em direitos humanos, em consonância com os valores que lhe são intrínsecos e desde uma abordagem interdisciplinar e multidimensional, é, na atualidade, um passo a mais na construção de uma cultura de direitos humanos. Referências ANDRADE, José Maria. Interdisciplinaridade em Direitos Humanos. In: FESTES, Antonio Carlos (org.). Direitos Humanos, um debate necessário. São Paulo: Brasiliense, 1989. v. 2. p.7-38. BALLESTRERI, Ricardo. 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Entender o que é a Educação em Direitos Humanos

Um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito de direitos, articulando-se entre as dimensões intrelaçadas: a)apreensão de conhecimentos historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos internacional, nacional e local; b)afirmação de valores, atitudes e práticas sociais que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; c)formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente nos níveis cognitivo, social, ético e político; d)desenvolvimento de processos metodológicos participativos e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos orientados à mudança de mentalidades e de práticas individuais e coletivas que possam gerar ações e instrumentos em favor da defesa, da promoção e ampliação dos direitos humanos.

“Nossa Mãe Tamain”. Religião, reelaboração cultural e

(publicado in: BRANDÃO, Sylvana. (Org.). História das religiões no Brasil. Recife: Editora Universitária UFPE, 2002, vol. 2, pp. 347-362) “Nossa Mãe Tamain”. Religião, reelaboração cultural e resistência indígena: o caso dos Xukuru do Ororubá (PE) - Edson Silva Em memória do Cacique Xicão e do reconhecido líder Chico Quelé, brutalmente assassinados em 20/05/98. e em 23/08/01, a mando de fazendeiros, invasores das terras do seu povo. Crimes até o momento impunes Índios: da tragédia final anunciada a uma história reescrita (p.347) O escritor Eduardo Galeano em seu conhecido livro As veias abertas da América Latina publicado em fins de 1970, no Uruguai, e que traduzido no Brasil já ultrapassou mais de 40 edições, escreveu sobre os povos indígenas e a colonização: “Os índios padeceram e padecem – síntese do drama de toda a América Latina – a maldição de sua própria riqueza (...) (p.348) As matanças dos indígenas começaram com Colombo e nunca cessaram” (1987: 58-59). E ao tratar do Brasil, na mesma obra, afirmou o conceituado autor: “Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desepareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo para os indígenas, o contato com a morte”. (pág. 60). A visão da história da colonização da América, apenas enquanto uma tragédia, por diversos autores que se dedicaram ao assunto e, durante muito tempo, pelas reflexões das Ciências Humanas e Sociais, fundamentaram-se nos relatos dos primeiros cronistas coloniais a exemplo de Bartolomé de Las Casas, que é o autor da célebre e conhecidíssima Brevíssima Relación de la Destruición de las Indias Ocidentales (1552), nos relatos de Gonzalo Oviedo, Juan Sepulveda, Bernadino de Sahagun, dentre outros, que descrevem as violências e atrocidades da colonização espanhola. Essa visão apenas trágica aliada a uma concepção evolucionista, norteou também por muito tempo, os estudos sobre os povos indígenas no Brasil. Estão presentes em As Américas e a civilização (citada por Eduardo Galeano) e em Os índios e a civilização, obras muito conhecidas do antropólogo Darcy Ribeiro, sendo que, nesta última, que(p.349) tem como subtítulo “ A integração das populações indígenas no Brasil moderno”, na parte que tratou das “fronteiras da civilização”, ao analisar a expansão pastoril no Nordeste, o autor concluiu: “Por todos os sertões do Nordeste, ao longo dos caminhos das boiadas, toda a terra já é pacificamente possuída pela sociedade nacional; e os remanescentes tribais que ainda resistem ao avassalamento só têm significado como acontecimentos locais, imponderáveis.” (Ribeiro, 1982:57). (grifamos). Contrariando as previsões funestas, os povos indígenas ao longo dos 500 anos de colonização, não somente elaboraram diferentes estratégias de resistência/sobrevivência, como também alcançaram nas últimas décadas, um considerável crescimento populacional. Crescimento este recentemente noticiado pela imprensa de 3,5% ao ano, maior que a média da população brasileira em 1,6%, segundo estimativa do IBGE. (Jornal Folha de São Paulo, 24/03/01,p.A9). Questionando assim as tradicionais imagens e visões eurocêntricas, colonialistas e evolucionistas, o que exigiu reformulações das teorias explicativas sobre esses povos. Classificados no Nordeste, oficialmente, como remanescentes de índios e, nos lugares onde existiram antigos aldeamentos, conhecidos no senso comum, por caboclos, condição muitas vezes assumida para esconder a identidade étnica diante das inúmeras perseguições nos conflitos das invasões de suas terras, a eles foram dedicados estudos de (p.350) seus hábitos e costumes considerados exóticos, com seus rituais, danças e manifestações folclóricas em vias de extinção, como aparecem em publicações que exaltaram de forma idílica a contribuição indígena nas origens e formação social de municípios do interior. Porém, o caboclo permaneceu índio, questionando as teorias do desaparecimento indígenas e assim, vários povos indígenas “invisíveis” no Nordeste, teceram uma história de resistência étnica afirmada nas primeiras décadas do século XX, no momento conjuntural por eles considerado propício para exigirem o reconhecimento oficial, para mobilizarem-se na reconquista de suas terras e de seus direitos históricos negados. (Silva, 2000: 110-111). Nos últimos 30 anos diversos povos indígenas ressurgiram na Região em um processo de emergência étnica. Esses povos vivenciaram um processo dinâmico de reelaborações culturais e de identidades negociadas, em um contexto político de luta pela terra e direitos sociais, processo esse explicado pela reflexão antropológica como etnogênese (Oliveira, 1999). Recentemente, a imprensa noticiou os casos de ressurgimento dos Pitaguary, no Ceará, dos Karuazu, os Kalancó, os Katoquin e os Koiupanká em Alagoas, dos Tumbalalá, e os Pipipã, em Pernambuco e dos Tupinambá, na Bahia. As diversas e diferentes estratégias de resistência indígena Longe de negar as inquestionáveis violências dos colonizadores europeus, que provocaram a significativa depopulação dos povos nativos, a exemplo do Brasil, onde uma população estimada em 5 milhões em 1500 está hoje reduzida a uma população com 550.438 indivíduos. Essa totalização inclui segundo dados do IBGE/99, cerca de 900 indígenas que são pertencentes a povos não contactados habitantes principalmente (p.351) em algumas localidades da Região Norte. Contabilizam 225 povos indígenas que falam 180 línguas distintas, habitam todas as regiões do país (Prezia e Hoornaert, 2000 ). Assim, a existência/permanência dos povos indígenas é um dado inquestionável. As discussões iniciadas nos anos 80, na área da Antropologia, sobre a dinâmica da colonização, as relações culturais em uma situação de contato, sobre a identidade étnica, a territorialização etc., como também as novas abordagens pelos estudos de História, exigindo repensar a idéia atribuída aos indígenas como “povos derrotados”, passivos, subjugados, que passaram a ser vistos como sujeitos/agentes ativos no processo colonial, num contexto de dominação/imposição cultural. Esses estudos buscaram compreender como os diversos povos em diferentes contextos situacionais, elaboraram diversas estratégias que possibilitaram a sobrevivência nesses cinco séculos de colonização. Nesse sentido, foi ampliada a concepção do próprio conceito de resistência, até então vigente, enquanto apenas confrontos, conflitos bélicos, guerras com fins trágicos e a morte de milhares de indígenas, para uma concepção mais ampla de relações culturais diferenciadas em um contexto de dominação e violências culturais: a resistência cultural do cotidiano, através de gestos, práticas, atitudes que quebraram uma suposta totalidade da dominação colonial. Uma vez questionadas as visões a respeito dos indígenas como “povos vencidos” e a idéia do “etnocídio”, enquanto total destruição física e cultural foram estudadas as diferentes estratégias utilizadas pelos povos nativos em uma permanente resistência ao colonialismo. As simulações, (p.352) as acomodações, os acordos, as alianças. O chamado hibridismo cultural, ou seja, as apropriações simbólicas que as culturas indígenas fizeram da cultura colonial, reformulando-a, adaptando-a, refazendo-a, influenciando-a, reinventando-a, no que é conhecido como religiosidade popular, sincretismo etc., que permeiam os “500 anos”. Autores como, Gruzinski (1995) e Bruit (1995) que estudaram a América espanhola, Vainfas (1997) e Barros (1997) que pesquisaram o Brasil, revelaram que mesmo naqueles contextos de diversas violências explícitas, os povos indígenas simularam–se derrotados e sabotaram a dominação colonial, estabelecendo uma “resistência invisível”, através da persistência de práticas religiosas ancestrais, com simulações de adesão ao cristianismo, práticas estas consideradas como idolatrias pelos missionários, deixando-os bastante irritados ao perceberem os desvios em seus trabalhos catequéticos. Acordos, negociados entre líderes indígenas e colonizadores garantiram a influência e o poder dos primeiros sobre seus grupos. Casos de rebeliões em aldeamentos de índios, já considerados mansos e cristãos, colocavam em questão o trabalho catequético de anos, que mantinha um suposto controle colonial sobre os povos indígenas. Negociações possíveis em um contexto de dominação foram feitas em diferentes situações e momentos, o que permitiu aos povos indígenas manterem um convívio aparentemente pacífico no mundo colonial, resistirem/sobreviverem, como também subverterem a suposta ordem dominante na história dos 500 anos. (Silva, 2000:100-103). (p.353) Nossa Sra. das Montanhas/Nossa Mãe Tamain: o rosto arredondado como o de uma “cabocla” “Nossa Senhora das Montanhas “Oi, arreia, arreia, arreia É uma santa de valor Tamain arreia, arreia (bis) Quem achou ela na mata Deus no céu e índio na Terra (bis) Foi o índio caçador Vamos ver quem pode mais Arreia, arreia, arreia, arreia É Deus no céu e índio na Terra” Oi, arreeia!” Cantos do ritual do Toré dançado pelos Xukuru O povo Xukuru habita a Serra do Ororubá, no Município de Pesqueira, na Região Agreste, a cerca de 215 Km do Recife, a capital do Estado de Pernambuco. Quanto aos números populacionais Xukuru, existem divergências em relação às estimativas mais recentes disponíveis. A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA/ESAI) contabilizou, em um levantamento realizado no ano de 1996, cerca de 6.363 indivíduos morando em 40 aldeias espalhadas pela Serra e no Bairro “Xukurus”, localizado na Cidade de Pesqueira. Esses dados foram contestados pelos próprios indígenas, que afirmaram a existência de 1.807 famílias moradoras em 23 aldeias e aproximadamente mais 200 famílias habitando em Bairros de Pesqueira, totalizando 7.842 indivíduos. (Professores Xukuru, 1997: 52). Segundo os indígenas, a diferença entre o número de aldeias se deve ao fato de que, oficialmente, alguns sítios onde moram Xukuru foram classificados aldeias. Os Xukuru que tiveram o aldeamento oficialmente declarado extinto em 1870, atendendo solicitação de invasores das terras indígenas, reivindicam a demarcação efetiva (p.354) (já que oficialmente foi reconhecida) de 27.555 ha, área que encontra-se invadida por mais de 280 fazendeiros e pequenos posseiros , uma situação permanente de conflitos, violência e mortes. Nos últimos 10 anos os Xukuru, bastante organizados e mobilizados, inicialmente sob a liderança do atuante Cacique Xicão, vêm retomando parte de suas terras expulsando tradicionais invasores, o que ocasionou o assassinato do expressivo Cacique, em 1998, e cuja suspeita do mandato recaiu sobre os invasores das terras indígenas. A colonização portuguesa na região onde habitam os Xukuru ocorreu a partir de 1654, quando a Coroa Portuguesa fez doações a senhores de engenho do litoral de grandes sesmarias de terras para criação de gado. Em 1661, atendendo solicitação oficial, os Oratorianos fundam o Aldeamento do Ararobá de Nossa Sra. das Montanhas, onde também possuiríam fazendas de gado, utilizando a mão-de-obra indígena. (Medeiros, 1993). Por determinação da legislação portuguesa (Diretório do Marquês de Pombal, de 1757), o antigo Aldeamento do Ararobá, foi elevado, em 1762, a categoria de Vila de Cimbres. Mesmo diante das proibições, perseguições e violências coloniais, os Xukuru permaneciam com seus cultos tradicionais, realizados às escondidas, após a decretação oficial do fim do Aldeamento no Século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, os Xukuru, como outros povos indígenas no Nordeste, retomaram com mais vigor a mobilização pela posse de suas terras e garantia de seus direitos, pressionando as autoridades do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O primeiro relatório oficial sobre os Xukuru data de 1944, e foi feito pelo sertanista e (p.355)funcionário do SPI, Cícero Cavalcanti (apud, Antunes,1973,40-43). Nesse Relatório, afirmava o sertanista que em razão dos “caboclos mais velhos” reunirem-se para realização dos seus rituais, eram denunciados como catimbozeiros pelos brancos à polícia. Líderes dos cultos indígenas foram intimados a comparecer à Delegacia, e os índios estavam proibidos de praticar “o segredo” do Ouricuri pela polícia. Outros indígenas foram denunciados, tendo as autoridades policiais “os proibido de curatórias”. O sertanista afirmava ainda que “alguns costumes Xukurus ainda vivem em seu coração”. O Toré era dançado quando fazem a Festa de Nossa Senhora das Montanhas, em Cimbres. Em uma publicação do início do século XX, o Toré foi descrito como uma dança “tradicionalmente ainda em voga, nomeadamente, entre os semi-selvagens de Cimbres” (Pereira da Costa, 1976, 754) (Grifamos). Escrevendo sobre as impressões transmitidas por um etnólogo, que no começo da década de 30 esteve em Cimbres e conheceu os Xukuru, uma cronista afirmava: Quanto a religião, tem uma espécie de idolatria, por infiltrações do catolicismo e pretendem o monopólio do culto à santa de sua devoção. Sabem, perfeitamente, que descendem da tribo Xukuru que ocupou aquela região, têm orgulho de sua procedência e julgam-se superiores aos outros habitantes, guardando rancor dos brancos por lhes haverem tomado as terras. (Melo, 1935, 43-44). Essas afirmações, considerando o etnocentrismo dos seus autores, revelam uma resistência dos indígenas, pois mesmo a despeito da extinção oficial do aldeamento, dos (p.356) discursos da “degeneração” e do “desaparecimento”, da espoliação violenta de suas terras, permaneceu a afirmação étnica Xukuru. Seguindo o calendário festivo em Cimbres, dos santos católicos romanos, São João, chamado Caô pelos Xukuru, é festejado em junho. N. Sra. das Montanhas, denominada Mãe Tamain, no início de julho, além de S. Miguel, em setembro. Além de outras práticas religiosas como rezar o Terço, promover novenas, viajar a Juazeiro do Norte/CE para as celebrações que lembram o Pe. Cícero, os Xukuru participam mais intensamente nos festejos dedicados a Caô e a Tamain. O primeiro diferente da imagem tradicional simbolizado por uma criança com um cordeiro, é visto pelos indígenas como um guerreiro. Assim, também é visto S. Miguel. Tamain é a protetora dos Xukuru e de Cimbres, considerado um espaço sagrado de propriedade indígena. Nas festas dedicadas a Caô e Tamain os Xukuru participam ativamente. Na festa para Tamain, a participação, porém, é maior: desde a Procissão da Bandeira, dançando o Toré, devidamente “fardados” com o Tacó (vestimenta de palha tradicional Xukuru), na frente do templo católico em Cimbres, ao transporte do andor. Só os Xukuru têm o direito de carregar o andor e tocar a imagem. Esse “monopólio” sempre foi motivo de questionamentos e conflitos com as autoridades religiosas que dirigem os festejos. Apesar disso, depois da Procissão gritando “Viva Tamain, Pai Tupã e o Cacique Xicão”, os Xukuru entram carregando o andor no templo, onde as lideranças postam-se em pé, próximas ao altar central, enquanto outros indígenas ocupam o corredor principal e as laterais. Ao final (p.357) da missa os não-índios retiram-se, em reconhecimento e respeito aos indígenas, cedendo espaço para os Xukuru que dançam o Toré ao redor dos bancos entoando repetidas vezes seus cantos rituais tradicionais. A apropriação e reinterpretação dos espaços e símbolos religiosos coloniais pelos Xukuru constituem uma afirmação étnica, de fortalecimento nas reinvindações dos direitos indígenas. O que pode ser observado em depoimentos recolhidos para um estudo (Neves, 1999:77; 118) realizado sobre as festas religiosas em Cimbres: “Mãe Tamain é aquela que leva a gente pra luta. Com força de Mãe Tamain, ninguém pára a gente não. Mesmo quando nós era mais perseguido, nossa Mãe sempre protegeu nosso ritual aqui na Vila”. “Tamain nasceu em Cimbres, ela era uma cabocla”. Os Xucuru, além de afirmarem que Cimbres é um espaço sagrado e daí a busca do domínio sobre ele, dizem também que N. Sra. das Montanhas/Tamain pertence a eles. O que aparece nos relatos das muitas versões sobre o “achado” da Santa, encontrada por uma índia criança, “um caboclo velho”, ou ainda por um índio enquanto caçava na mata. Dizem também que foram os índios que fizeram “uma cabana de palha para ela em cima do tronco onde ela foi encontrada”. Também descrevem seus traços físicos do rosto como o de uma “cabocla”. Se por um lado a introdução de um culto mariano fez parte da pedagogia evangelizadora missionária inicial junto aos Xukuru, onde o estímulo às devoções a imagem (p.358) de N. Sra. das Montanhas comunicava bem mais que a pregação com palavras ou textos escritos estranhos à cultura indígena, por outro lado, houve uma aproximação entre os mundos sobrenaturais indígenas e cristão. Pode-se pensar em uma situação análoga para o caso da colonização espanhola no México, onde “o êxito da imagem cristã entre os índios é indissociável, portanto, de uma conjuntura inicial que em muitos aspectos resulta excepcional, pois une uma receptividade imediata e uma habilidade precoce as notáveis capacidades de assimilação, interpretação e criação”. (Gruzinski, 1994:182). A imagem cristã tornou-se um símbolo para o povo Xukuru que em torno dela “reconstruíram nexos sociais e culturais”, o mesmo ocorrendo mais tarde com as devoções a outros santos: São João e São Miguel também introduzidos pelos missionários, demostrando que os indígenas nunca foram apenas “consumidores passivos” da evangelização. (Idem, 1994). Quando os Xukuru apropriaram-se das imagens cristãs, aconteceu uma “captura do sobrenatural cristão” pelos indígenas e uma “cristianização do imaginário indígena”, a semelhança do que aconteceu no México colonial, como analisa Serge Gruzinski (1995). Ocorreram relações em um movimento dinâmico de “circularidade cultural”, onde “temos, por um lado, dicotomia cultural, mas por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (Ginzburg, 1987:21), movimento este bem mais complexo do que a explicação de uma suposta aculturação Xukuru. Os Xukuru apropriaram-se dos símbolos coloniais religiosos, dando-lhes, ainda, um significado também para sua organização e mobilização, expressadas em momentos de (p.359) cultos públicos. Um exemplo disso ocorreu na Festa de N. S. das Montanhas/Tamain em 1998, quando na frente da Procissão os Xukuru levavam uma faixa que dizia: “Chicão com teus familiares e amigos deixaste como recordação um pouco do seu sorriso”, lembrando uma das mais expressivas lideranças na lutas pelos direitos indígenas. Observando as práticas Xukuru é possível comprovar as muitas e diferentes estratégias conscientes, ou não, que os povos indígenas elaboraram frente à colonização. As relações no universo cultural/religioso se constituem um campo sobremaneira onde ocorreu simulações, embates, associações, inversões, etc. que, uma vez pesquisadas, possibilitarão superar visões nefastas sobre os povos indígenas, compreender melhor a história e a dinâmica do processo colonial e os seus atores. Foi essa a tentativa neste breve estudo introdutório. NOTA Em 02/05/01, o Governo Federal homologou as terras Xukuru (o último passo burocrático no reconhecimento oficial de um território indígena). Existiram razões demais para festejar, por ocasião da 1a Assembléia do Povo Xukuru em Memória Viva do Cacique Xicão, que ocorreu de 17 a 19/05, para a qual me senti muito honrado ao receber o convite para contribuir na assessoria. O encontro, que contou com delegações de outros povos indígenas e muitas outras pessoas solidárias com a causa indígena, culminou como anteriormente planejado, com uma caminhada da Serra do Ororubá (p.360) para as ruas de Pesqueira, e foi realizado um ato público pela passagem dos 3 anos do assassinato do Cacique Xicão. Restava ao poder público indenizar, segundo a lei, as benfeitorias dos invasores promovendo assim a saída deles da área indígena. O que vem ocorrendo, com a devolução por parte de pequenos proprietários e fazendeiros das terras aos Xukuru. Porém, aos invasores ainda é facultado o direito a recursos judiciais, contestando o valor das indenizações, como fizeram alguns fazendeiros, cabendo a justiça uma decisão. Todavia, a homologação é um ato irrevogável. A persistência do Cacique Xicão, de Chico Quelé, o empenho, a luta, suas vidas e de tantos outros que lutaram pelo reconhecimento dos direitos Xukuru, os direitos indígenas, não foi em vão. Lamentável o preço tão caro: a própria vida! BIBLIOGRAFIA ANTUNES, C. (1973). Wakona-Kariri-Xucuru. Aspectos sócio-antropológicos dos remanescentes indígenas de Alagoas. Maceió, Universidade Federal de Alagoas. BARROS, P.S. (1997). Confrontos invisíveis: colonialismo e resistência indígena no Ceará. Recife, UFPE, Dissertação (Mestrado em História). BRUIT, H. H. (1995). Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. Campinas, Unicamp, São Paulo, Iluminuras. CCLF – Centro de Cultura Luiz Freire (1997). Memórias do Povo Xukuru. Olinda, dig. (p.361) FIAM/CEHM / Prefeitura de Pesqueira. (1985). Livro da criação da Vila de Cimbres: 1762-1867. Recife, FIAM/CEHM. GALEANO, Eduardo. (1987). As veias abertas da América Latina. 25 ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. GINZBURG, Carlo. (1987). O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, GRUZINSKI, Serge. (1994). La guerra de las imágenes: de Cristóbal Colón a “Blade Runner” (1492-2019). México, Fondo de Cultura Económica. ________________. 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