René Cassin, um dos construtores da Declaração Universal dos Direitos
Humanos da ONU
Marc Agi
Não haverá paz sobre este planeta enquanto os direitos humanos forem
violados em alguma parte do mundo", disse o jurista francês René Cassin ao
ser anunciada sua nomeação para o Prêmio Nobel da Paz em 1968. Através
dele, a contribuição essencial da França residiu na humanidade e na
universalidade desse texto histórico.
Foi em Paris, no Palácio de Chaillot, que a Assembléia Geral das Nações Unidas votou, em 10 de dezembro de 1948, a Declaração Universal dos
Direitos do Homem. Esse fato não é sem importância. O mundo prestava, assim, homenagem à " pátria dos direitos humanos " e aos esforços que ela havia empreendido, em grande parte graças à atuação de René Cassin,
na elaboração de um texto que, depois dos crimes da Alemanha nazista, devia permitir à humanidade retomar seu controle através de alguns conceitos fundamentais reunidos no " primeiro manifesto (...), primeiro movimento de
ordem ética jamais adotado pela humanidade organizada¹".
A idéia de que a salvação da humanidade está no respeito e na proteção aos
direitos humanos já havia sido enunciada no final do século XVII na Inglaterra
(Habeas Corpus, Bill of Rights) e também nos Estados Unidos, por ocasião da
Declaração da Independência. Mas, enquanto a declaração americana
expressa antes de tudo uma vontade de descolonização e independência
nacional, a declaração francesa de 1789 comporta uma dimensão mais
universal, já que ela propõe libertar, não os franceses de uma potência
estrangeira, mas o próprio ser humano de qualquer servidão – e em particular o
cidadão francês do absolutismo. .
Depois dos terríveis massacres da Primeira Guerra Mundial, a humanidade, é
verdade, já havia tentado organizar-se de uma vez por todas. Pensava-se na
época que para alcançar-se uma paz definitiva bastava cortar as garras do
pangermanismo, fazer a Alemanha pagar as reparações dos prejuízos de
guerra e instituir acordos internacionais garantidos por uma Sociedade das
Nações criada com esse fim.
Mas essa paz contratual, assinada apenas entre governos efêmeros e não
entre povos2 , " garantida " por uma organização desprovida de poderes
verdadeiros de intervenção, cuja universalidade deixava muito a desejar
(preocupados em salvaguardar sua neutralidade baseada no respeito a um
protecionismo altivo, os Estados Unidos haviam, de fato, enunciado a fazer
parte dela), e que deixava intacta a doutrina da preeminência da soberania dos
países, revelou-se incapaz de resistir às invectivas dos totalitarismos
nascentes. A execução, por estes últimos, de políticas de expansão e de
conquista, e a promulgação, particularmente na Alemanha nazista, das leis
racistas e anti-semitas, obrigavam a pensar que, se por uma desventura uma
outra guerra mundial eclodisse, seria uma guerra a ser feita não apenas contra
o imperialismo, mas também contra doutrinas visceralmente opostas à
democracia e à universalidade dos direitos humanos.
A concepção francesa como herança
A Declaração de 1948 inscreve-se na linha direta da de 1789, cujos princípios
mais universais (liberdade, igualdade, fraternidade) serão mantidos, graças a
René Cassin, no artigo primeiro do texto de 1948: " Todos os seres humanos
nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e
consciência e devem agir uns em relação aos outros dentro de um espírito de
fraternidade ". Da mesma forma, a Declaração de 1789 proclamava que " a
ignorância, o esquecimento ou o desprezo pelos direitos humanos são as
únicas causas das adversidades públicas e da corrupção dos governos ". Esse
princípio fundador será quase que textualmente reproduzido no texto de 1948,
onde está escrito que " o desconhecimento e o desprezo aos direitos humanos
levaram a atos de barbárie que revoltam a consciência da humanidade... ".
Esses princípios políticos, agora complementados pelos direitos econômicos,
sociais e culturais desde a adoção, em 1966, de um pacto nesse sentido,
figuram no projeto da " Declaração Universal dos Direitos do Homem ",
elaborado pela França e apresentado às Nações Unidas em 10 de abril de
1948. Esse texto era fruto dos trabalhos da Comissão Consultiva dos Direitos
Humanos, criada em Paris em 1947 pelo governo francês, sob proposta de
René Cassin. Presidida por este último, essa comissão, da qual viria a nascer a
Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos, era essencialmente
composta de juristas e diplomatas; ela era encarregada de preparar as
instruções destinadas à delegação francesa nas Nações Unidas, a qual era
dirigida por... René Cassin.
Uma das melhores iniciativas tomadas pela França, para participar da redação
da Declaração, foi provavelmente a de escolher esse " utopista pragmático ",
que era na ocasião vice-presidente do Conselho de Estado. Com efeito, René
Cassin acrescentava a essa missão não apenas suas qualidades de jurista
renomado (ele fora o mentor da lei sobre os direitos à reparação para as
vítimas da Primeira Guerra Mundial e, em 1940, o redator dos Acordos
Churchill-de Gaulle, que deviam dar uma base jurídica e internacional à França
livre), mas também sua longa prática de defesa dos direitos humanos já que,
desde o advento do fascismo e do nazismo, ele havia redigido inúmeros textos
revelando a necessidade, diante destes, de se basear a paz, a partir de então,
na proteção aos direitos humanos.
No início de 1946, René Cassin chega a Nova York para representar a França
na Comissão dos Direitos do Homem, presidida por Eleanor Roosevel. Eles
haviam se conhecido em abril de 1942 em Londres, para onde o presidente dos
Estados Unidos enviara a esposa com o objetivo de manter elevado o moral
dos ingleses. A Srª Roosevelt pôde apreciar na ocasião não somente as
qualidades de militante apaixonado, mas também de " criador do direito " que
René Cassin possuía. Assim, ela o recebe com uma indisfarçável satisfação,
pede-lhe que assuma a vice-presidência da Comissão e que redija, com base
em documentos preparados pela secretaria das Nações Unidas, sob a direção
do professor canadense Humphrey, um anteprojeto de Declaração.
Esse texto, em 45 artigos, será apresentado à Comissão em 16 de junho de
1947 e servirá de base para discussão até a adoção da versão definitiva.
Quando se realiza um estudo comparado dos dois textos, percebe-se com
surpresa que a maior parte dos conceitos emitidos no final já faz parte do
anteprojeto e que, em muitos aspectos, este é ainda mais audacioso,
especialmente na afirmação da universalidade dos direitos humanos, do que o
texto final.
É principalmente no sentido dessa idéia de universalidade que se exerce a
maior influência da França e de René Cassin – a quem se deve a aprovação da
referência a " direitos diretamente universais " (ou seja que só podem ser
garantidos por uma instância supranacional como por exemplo as próprias
Nações Unidas). Mas, o que dava mais orgulho a René Cassin era ter
conseguido (com o apoio dos soviéticos e contra a posição dos Estados
Unidos, que obrigaram Eleanor Roosevelt a votar contra) fazer admitir que os
direitos econômicos, sociais e culturais deveriam passar a ser considerados
como direitos fundamentais, indissoluvelmente ligados aos direitos civis e
políticos.
O papel piloto de Eleanor Roosevelt
A influência da presidenta da Comissão, Eleanor Roosevelt, foi de uma outra
natureza. Essa mulher extremamente culta, que, para grande satisfação de
René Cassin, falava admiravelmente bem o francês – ela foi a aliada objetiva
deste último para impor a sua utilização oficial junto com o inglês –, conseguiu
introduzir princípios em favor da igualdade homem-mulher durante os trabalhos
(em especial com a noção pioneira de " a trabalho igual, salário igual "), mas
também dar ao texto, graças a seu espírito de síntese e seu senso das
realidades, o poder concreto e a clareza que possui.
Foi também René Cassin que, durante a fase final das negociações, conseguiu
fazer com que o próprio título da Declaração fosse modificado, e que este fosse
qualificado a partir de então de " universal ", e não mais apenas
" internacional ". Essa era uma maneira de fazer com que o indivíduo entrasse
diretamente no campo do direito internacional e de ligar diretamente a
Declaração ao conceito fundador da Carta das Nações Unidas, que começava
com " Nós, Povos das Nações Unidas... " – fórmula que Cassin havia colocado
no início de seu anteprojeto, mas que os países, naquele início de guerra fria,
recusaram-se a conservar, com o objetivo de manter intacta a sua soberania.
Os redatores da Declaração de 1948, Eleanor Roosevelt e René Cassin à
frente, sabiam bem que o ponto sensível era a " não ingerência nos assuntos
internos dos países ", base do sistema da ONU. Porque não se podia falar ao
mesmo tempo da universalidade dos direitos humanos e deixar a sua proteção
sob a responsabilidade única de países soberanos que, a exemplo de
Goebbels, ministro da Informação e da Propaganda do regime nazista,
poderiam a qualquer momento " fazer o que quisessem com seus comunistas e
judeus ".
Aqueles que, como René Cassin, haviam pensado que uma simples
declaração só poderia representar, no caminho da futura Carta dos Direitos do
Homem, a primeira parte de um tríptico compreendendo também os pactos e
as medidas de aplicação indispensáveis a sua aplicação, tiveram no final das
contas que se considerar felizes por novas " Tábuas da Lei Humana2 " serem
adotadas depois de apenas dezoito meses de trabalho. No entender de Cassin,
isto era melhor do que nada – sobretudo se se ficasse sabendo a posteriori que
seria necessário esperar dezoito anos para que os pactos fossem redigidos e
adotados (1966) e meio século para que se começasse finalmente a estudar a
criação de uma corte Criminal Internacional Permanente (1900).
São raros os textos internacionais em que se pode perceber, a esse ponto, a
contribuição individual de personalidades como Eleanor Roosevelt ou René
Cassin. Os textos posteriores serão redigidos de maneira mais anônima, por
comissões de especialistas. O sopro universal da Declaração de 1948, sua
força moral, sua clareza também na expressão dos grandes princípios, sua
preocupação constante com o sofrimento individual, vêm provavelmente do fato
de terem sido pessoas, e não apenas Estados, que presidiram sua redação. O
papel essencial da França e de René Cassin terá sido talvez o de contribuir
com essa parcela de humanidade, que constitui a verdadeira universalidade do
texto das Nações Unidas.
Marc Agi
Membro da Comissão Nacional Consultiva dos Direitos Humanos e Diretor
Geral da Fundação da Arca da Fraternidade
Marc Agi é o autor de René Cassin, père de la Déclaration universelle des
droits de l’Homme, (René Cassin, pai da Declaração Universal dos Direitos do
Homem) Livraria Acadêmica Perrin, Paris, 1998.
1. Declaração de René Cassin perante a Comissão dos Direitos Humanos no
início de fevereiro de 1947
2. A Carta das Nações Unidas, adotada em São Francisco em 1945, começa
com a famosa fórmula "Nós, povos das Nações Unidas
Enviado por Anne em 22 de abril 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário