Os Fulni-ô:
múltiplos olhares em uma contribuição para o reconhecimento das
sociodiversidades indígenas no Brasil
SCHRÖDER,
Peter. (Org.). Cultura, identidade e
território no Nordeste indígena: os Fulni-ô. Recife, Editora Universitária
da UFPE, 2012. 262p.
Em
se tratando dos “índios”, no geral e mesmo ainda no meio acadêmico, após alguns
anos de pesquisas e de convivência nesse ambiente com colegas de diferentes
áreas do conhecimento, constatamos que um dos maiores desafios é a superação de
visões exóticas para abordagens críticas, aprofundadas sobre a história, as
sociodiversidades indígenas e as relações dos povos indígenas com e na nossa
sociedade. E além do mais, quando diz respeito a povos como os Fulni-ô,
falantes do Yaathe e do Português sendo o único povo bilíngue no Nordeste
(excetuando o Maranhão), habitando em Águas Belas no Agreste pernambucano a
cerca de 300 km do Recife.
Sobre
as sociodiversidades indígenas em nosso país o índio Gersem Baniwa (os Baniwa
habitam as margens do Rio Içana, em aldeias no Alto Rio Negro e nos centros
urbanos de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel e Barcelos/AM), que é Mestre
e recém-Doutor em Antropologia pela UnB, publicou o livro O índio brasileiro: o que
você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje, onde
escreveu:
A
sua diversidade, a história de cada um e o contexto em que vivem criam
dificuldades para enquadrá-los em uma definição única. Eles mesmos, em geral,
não aceitam as tentativas exteriores de retratá-los e defendem como um
principio fundamental o direito de se autodefinirem. (BANIWA, 2006, p.47).
Após
discorrer sobre as complexidades das organizações sociopolíticas dos diferentes
povos indígenas nas Américas, questionando as visões etnocêntricas dos
colonizadores europeus o pesquisador indígena ainda afirmou:
Desta
constatação histórica importa destacar que, quando falamos de diversidade
cultural indígena, estamos falando de diversidade de civilizações autônomas e
de culturas; de sistemas políticos, jurídicos, econômicos, enfim, de
organizações sociais, econômicas e politicas construídas ao longo de milhares
de anos, do mesmo modo que outras civilizações dos demais continentes europeu,
asiático, africano e a Oceania. Não se trata, portanto, de civilizações ou
culturas superiores ou inferiores, mas de civilizações e culturas equivalentes,
mas diferentes. (BANIWA, 2006, p.49).
Na
Introdução do livro aqui resenhado, o organizador da coletânea Peter Schröder
de forma bastante emblemática e provocativa afirmou: “É fácil escrever alguma
coisa sobre os Fulni-ô” e para isso basta recorrer a uma bibliografia
existente. Mas, no paragrafo seguinte Schröder enfatiza o quanto é difícil
escrever sobre aquele povo indígena, diante do desconhecimento resultante de
barreiras impostas pelos Fulni-ô que impedem o acesso a sua organização
sociopolítica e expressões socioculturais, notadamente a língua e o ritual religioso
do Ouricuri, e ainda as contestações e questionamentos dos índios aos escritos
a seu respeito, elaborado por pesquisadores, mais especificamente pelos antropólogos.
Após
o texto onde o organizador da coletânea procurou situar de forma resumida a história
territorial Fulni-ô, segue-se o texto de Miguel Foti que resultou da
Dissertação de Mestrado na UnB em 1991 onde o antropólogo procurou descrever e
refletir a partir do cotidiano durante seu trabalho de campo, o universo
simbólico Fulni-ô baseado na resistência do segredo das expressões
socioculturais daquele povo indígena.
O
texto seguinte de Eliana Quirino, que teve sua promissora trajetória de
pesquisadora interrompida com o seu falecimento em outubro de 2011, é uma
discussão baseada principalmente na sua Dissertação de Mestrado em
Antropologia/UFRN. Tendo como base as memórias Fulni-ô a exemplo do
aparecimento da imagem de N. Sra. da Conceição, a participação indígena na
Guerra do Paraguai, a marcante e sempre remorada atuação do Pe. Alfredo Dâmaso
em defesa dos índios em Águas Belas, autora discutiu como essas narrativas são
fundamentais para afirmação da identidade indígena e os direitos territoriais
reivindicados.
Um
exercício em discutir a identidade étnica a partir do próprio ponto de vista
indígena foi realizado no texto seguinte por Wilke Torres de Melo, indígena
Fulni-ô formado em Ciências Sociais pela UFRPE e atualmente realizando pesquisa
de mestrado sobre o sistema político Fulni-ô. Em seu texto Wilke procurou
evidenciar as imbricações entre identidade étnica e reciprocidade entre os
Fulni-ô discutindo as relações endógenas e exógenas de poder vistas a partir do
princípio da união, do respeito e da reciprocidade baseados na expressão
Fulni-ô Safenkia Fortheke que segundo
o autor caracteriza e unifica aquele povo indígena.
A participação de Wilker na
coletânea é significativa por se tratar de uma reflexão “nativa” e, além disso,
como informou o organizador na Introdução do livro, numa iniciativa inédita e
antes da publicação todos os artigos foram enviados ao pesquisador indígena
para serem discutidos entre os Fulni-ô, como forma de apresentarem sugestões e
as “visões Indígenas” sobre conteúdos dos textos.
Uma contribuição com uma
abordagem diferenciada é o artigo de Carla Siqueira Campos, resultado de sua
Dissertação em Antropologia/UFPE onde a autora discute a organização e produção
econômica Fulni-ô fundada no acesso aos recursos ambientais no Semiárido, nas
diferentes formas de aquisição de recursos econômicos por meios de salários,
aposentadorias e os tão conhecidos “projetos” e as suas influências na
qualidade de vida dos indígenas.
O artigo seguinte da
coletânea de autoria de Áurea Fabiana A. de Albuquerque Gerum uma economista e
Werner Doppler estudioso alemão de sistemas agrícolas rurais nos trópicos, a
primeira vista parece muito técnico devido às várias tabelas e gráficos. Seus
autores discutiram com base em dados empíricos as relações ente a
disponibilidade de terras, a renda das famílias a o uso dos recursos produtivos
entre os Fulni-ô.
No último artigo da
coletânea, Sérgio Neves Dantas abordou como as músicas Fulni-ô expressam
aspectos da memoria identitárias e mística daquele povo indígena. O autor
procurou também evidenciar a dimensão poética e sagrada dessa musicalidade. Sua
análise baseia-se, sobretudo, na produção musical contemporânea gravada por
grupos de índios Fulni-ô, como forma de afirmação da identidade étnica daquele
povo.
Publicado como primeiro
volume da Série Antropologia e Etnicidade, sob os auspícios do NEPE (Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade), um dos núcleos de pesquisas no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia/UFPE, o livro é composto por sete artigos é
completada com uma relação bibliográfica comentada sobre os Fulni-ô e trazendo
ainda em anexo vários documentos relativos às terras daquele povo indígena.
A publicação dessa coletânea
é muito oportuna pelo fato de reunir um conjunto de textos com diferentes
olhares e abordagens que procuram fugir do exotismo, como também do simplismo
em tratar sobre um povo tão singular, situado no contexto sociohistorico do que
se convencionou chamar-se Nordeste brasileiro, onde a presença indígena foi em
muito ignorada pelos estudos acadêmicos e deliberadamente negada seja pelas
autoridades constituídas, seja também pelo senso comum.
Diante exíguo conhecimento que
se tem sobre os Fulni-ô e da dispersão dos poucos estudos publicados a respeito
daquele povo indígena, provavelmente a primeira edição dessa importante
coletânea será brevemente esgotada. Pensando em uma segunda edição segue sugestões.
A primeira diz respeito ao próprio titulo do livro, pois da forma com estar ao
ser referenciado os Fulni-ô aparecem como última parte do título: Cultura, identidade e território no Nordeste
indígena: os Fulni-ô. Para um efeito prático da referenciação
bibliográfica propomos então uma inversão no título para os Fulni-ô: cultura, identidade e território no Nordeste
indígena.
Sugerimos também a inclusão
de mapas de localização de compreenda o Nordeste, Pernambuco, o Agreste e Águas
Belas onde habitam os Fulni-ô. A nosso ver é tal mapa imprescindível, pois
possibilitará a visualização do povo indígena em questão e contexto das
relações históricas e socioespaciais onde o grupo estar inserido. Sabemos que
imagens de uma forma em geral encarecem a produção bibliográfica, todavia a
inclusão de fotografias, ao menos em preto e branco, também enriqueceria e
muito as abordagens dos textos.
Por fim, uma pergunta: para
enriquecer mais ainda a coletânea, porque não acrescentar na Introdução de uma
reedição comentários sobre quais foram as argumentações dos Fulni-ô a respeito das
leituras prévias dos textos antes da publicação e como ocorreu a recepção daquele
povo ao receber o livro publicado?
Lamentamos a ausência na
coletânea de artigos na área História. Infelizmente frente ainda ao pouco
interesse de historiadores sobre a temática, colegas de outras áreas principalmente
da Antropologia cada vez procuram suprir essa lacuna, realizando pesquisas em
fontes históricas para embasarem seus estudos e reflexões a respeito dos povos
indígenas.
Ainda para uma segunda
edição ou um possível e merecido segundo volume da coletânea, lembramos o
estudo A extinção do Aldeamento do
Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da imagem dos
"índios misturados" no século XIX, apresentado em 2006 por Mariana
Albuqquerque Dantas como Monografia de Conclusão do Curso de Bacharelado em
História/UFPE.
A mesma autora defendeu na UFF/RJ
em 2010 a Dissertação de Mestrado intitulada História dinâmica social e estratégias indígenas: disputas e alianças
no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas, Pernambuco. (1860-1920). São duas pesquisas
baseadas amplamente em fontes históricas disponíveis no Arquivo Público
Estadual de Pernambuco e nas discussões da produção bibliográfica atualizada
sobre os povos indígenas no Nordeste.
No momento em que a
sociedade civil no Brasil, por meio dos movimentos sociais principalmente na
Educação, questiona os discursos sobre uma suposta identidade cultural
nacional, a publicação dessa coletânea reveste-se, portanto, de um grande
significado. A afirmação das sociodiversidades no país, questionando a mestiçagem
como ideia de uma cultura e identidade nacional, significa o reconhecimento dos
povos indígenas, a exemplo dos Fulni-ô, em suas diferentes expressões
socioculturais,
Buscando compreender as
possibilidades de coexistência socioculturais, fundamentada nos princípios da
interculturalidade,
A
interculturalidade é uma prática de vida que pressupõe a possibilidade de
convivência e coexistência entre culturas e identidades. Sua base é o diálogo
entre diferentes, que se faz presente por meio de diversas linguagens e
expressões culturais, visando à superação de intolerância e da violência entre
indivíduos e grupos sociais culturalmente distintos. (BANIWA, 2006, p.51).
Essa coletânea é uma
excelente referência tanto para pesquisadores especializados no estudo da
temática indígena, como para as demais pessoas interessadas sobre o assunto e
principalmente professores indígenas e não-indígenas que terão em mãos uma
fonte de estudos sobre o tema, mais precisamente ainda na fragrante ausência de
subsídios, objetivando atender as exigências da Lei 11.645/2008 que determinou
a inclusão no ensino da história e culturas dos povos indígenas nas escolas
públicas e privadas no Brasil.
Referências
BANIWA,
Gersem dos Santos Luciano. O índio
brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de
hoje. Brasília: MEC/Secad; Museu Nacional/UFRJ, 2006.
DANTAS,
Mariana Albuqquerque. A extinção do
Aldeamento do Ipanema em Pernambuco: disputa fundiária e a construção da
imagem dos "índios misturados" no século XIX. Monografia de (Bacharelado)
– Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 2006.
_______. História dinâmica social e estratégias
indígenas: disputas e alianças no Aldeamento do Ipanema em Águas Belas,
Pernambuco. (1860-1920). Dissertação (Mestrado) – Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2010.
SILVA,
Edson. História e diversidades: os direitos às diferenças. Questionando Chico
Buarque, Tom Zé, Lenine... In: MOREIRA, Harley Abrantes. (Org.). Africanidades: repensando identidades,
discursos e ensino de História da África. Recife: Livro Rápido/UPE, 2012,
p. 11-37.
*Doutor em História Social pela
UNICAMP. Leciona no Programa de Pós-Graduação em História/UFCG (Campina
Grande-PB) e no Curso de Licenciatura Intercultural Indígena na UFPE/Campus
Caruaru, destinado a formação de professores/as indígenas. É professor de História
no Centro de Educação/Col. de Aplicação-UFPE/Campus Recife E-mail:
edson.edsilva@hotmail.com
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