Índice
2. Literaturas africanas escritas em língua portuguesa: o papel
da imprensa e do ensino para o seu surgimento
[…] A literatura colonial, define-se essencialmente pelo facto de o centro do universo narrativo ou poético se vincular ao homem europeu e não ao homem africano. No contexto da literatura colonial, por décadas exaltada, o homem negro aparece como que por acidente, por vezes visto paternalisticamente e, quando tal acontece, é já um avanço, porque a norma é a sua animalização ou coisificação. O branco é elevado à categoria de herói mítico, o desbravador das terras inóspitas, o portador de uma cultura superior. Exemplo: «o único país que pode explorar seriamente a África, é Portugal» (prefácio de Manuel Pinheiro Chagas a Os sertões d’África, 1880, de Alfredo de Sarmento, onde aliás se pode ler sobre o negro: «É um homem na forma, mas os instintos são de fera», p. 87). Paradoxalmente, o branco é eleito como o grande sacrificado. A aplicação do ponto de vista colonialista tem no europeu o agente dinâmico e não o opressor: «Fiel aos nossos deveres de dominador, grata ao nosso orgulho, útil às populações», escrevia um homem anti-fascista, Augusto Casimiro (Nova largada, 1929). Predominavam, então, as ideias, da inferioridade do homem negro, que teóricos racistas, haviam derramado e para as quais teria contribuído o filósofo Lévy-Bruhl com a sua tese da mentalidade pré-lógica, — sendo certo, embora, que a renunciou pouco antes de morrer.
Logo no último quartel do século XIX
se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período 20/30 do século XX
que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca colonialista, na
aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado pelo
exótico. Aí se destaca um naipe todo ele incapaz de apreender o homem africano
no seu contexto real e na sua complexa personalidade. É certo que justo será
destacar pela qualidade da sua escrita João de Lemos, Almas negras,
1937, porque nele, apesar de uma deficiente visão, se denota um meritório
esforço de análise e intenção humanística. Mas, escritor português, manietado
pela distanciação colonialista, por norma, dá ao seu discurso um sentido
racista hoje de inconcebível aceitação. Henrique Galvão: «A sua face negra, de
beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos» (O vélo d’oiro, 4ª ed.,
1936, p. 122); ou: «Era um negro esguio» [o Mandobe] que «dava a impressão
[...] dum excelente animal de corrida» (p. 34); Hipólito Raposo (Ana a
Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: «Queimados no ardor
silencioso de Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar
heróico dos Lusíadas» (p. 21), e outros (muitos) como António Gonçalves
Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito Camacho,
Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de literatura até aos
nossos dias, com tendência, no entanto, para reflectir os efeitos de uma
perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas e políticas,
porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira viagem, 1952) e,
noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito Raposo,
citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949). Essa incapacidade de
penetrar no mundo africano terminou por se instalar na consciência de um ou
outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de vista teórico, como
é o caso de José Osório de Oliveira, que se interroga a si próprio:
«Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da raça negra?» (Roteiro de África,
1936, p. 55).
O tempo histórico, o tempo cultural,
para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa instauração do
fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí vinha já o
célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma tarefa de
tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da mentalidade
do europeu.
Hoje, não há lugar para dúvidas:
muitas dessas obras estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que,
apesar de prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade
coloniais, evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade
estética. Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e
arrumará a quase totalidade desta literatura no discurso da acção colonizadora
ou no nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado.
Manuel Ferreira, Literaturas
Africanas de Expressão Portuguesa, Lisboa, ICALP, 1977, vol.1., pp. 10-13.
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/bdc/eliterarios/006/bb06.pdf
2. LITERATURAS AFRICANAS ESCRITAS EM LÍNGUA
PORTUGUESA:
O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU SURGIMENTO
O PAPEL DA IMPRENSA E DO ENSINO PARA O SEU SURGIMENTO
Imprensa
A tipografia foi introduzida nas
colónias nas seguintes datas: Cabo Verde (1842); Angola (1845); Moçambique
(1854); São Tomé e Príncipe (1857) e Guiné-Bissau (1879).
Os primeiros órgãos de comunicação
social foram o Boletim Oficial de cada colónia, que dava abrigo à legislação, noticiário oficial e religioso, mas que
também incluía textos literários (sobretudo poemas, mas eventualmente crónicas
ou contos).
Em geral, no século XIX, com excepção
de Angola, a imprensa foi menos importante do que seria de supor devido também
à repressão. O semanário O Progresso (1868), de Moçambique, religioso,
instrutivo, comercial e agrícola, teve apenas um número, porque, dois dias
depois, era obrigado a ir à censura prévia, que o proibiu. Um militante
republicano, Carvalho e Silva, no início deste século, fundou quatro jornais,
todos encerrados, o último dos quais assaltado, a tipografia destruída e o
director agredido, de que resultou a sua morte. De facto, a história da
imprensa não oficial de Moçambique foi geralmente de oposição aos governos, da
colónia e de Lisboa.
Com a República, até ao advento da
lei de João Belo (1926) contra a liberdade de imprensa, floresceu uma imprensa
operária. Mas os mais célebres, e justamente celebrados, pelo seu papel na
consciencialização da moçambicanidade, foram os jornais fundados pelos irmãos
José e João Albasini: O Africano (1909-1918), O Brado Africano
(1918) e O Itinerário (1919), o penúltimo sobrevivendo durante décadas e
o último reaparecendo, mais tarde, noutros moldes (1941-55).
Na Guiné, o primeiro jornal, Ecos
da Guiné, apareceu somente em 1920.
Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe,
a imprensa contribuiu decisivamente para o incentivo à criação literária, no
quadro de limitação insular. A fundação do Liceu-Seminário de São Nicolau (Cabo
Verde), nos anos 60 do século XIX, ajuda a explicar o nível de escolarização
cabo-verdiana (a primeira escola primária surgiu em 1817). Curiosamente,
cabo-verdianos e são-tomenses, vivendo em Portugal, na primeira metade do
século XX, estiveram sempre muito activos na busca de uma identidade cultural e
da consciencialização (proto-nacional ou simplesmente na produção intelectual
desligada de intenções insulares. Basta recordar intelectuais como Viana de
Almeida, Mário Domingues, Marcelo da Veiga ou Salustino da Graça Espírito Santo
(de São Tomé e Príncipe) e Pedro Cardoso (de Cabo Verde).
No século XIX, foi intensa e
brilhante a actividade jornalística em Angola. Depois da criação do Boletim
Oficial (1845), surge A Aurora (1855), jornal recreativo e
literário. Mais tarde, aparece um jornal pugnando pela efectiva abolição da
escravatura, para além da letra da lei, A Civilização da África
Portuguesa (1866), dirigido por Urbano de Castro e Alfredo Mântua,
europeus identificados com Angola.
De 1860 a 1900, surge cerca de meia
centena de títulos de jornais, artesanais e
episódicos, mas de grande importância para o fomento da actividade intelectual
e literária. Desde o Jornal de Luanda (1878), do escritor e advogado
Alfredo Troni que marca a transição do jornalismo de cariz mais colonial
para o proto-nacionalista, até O Futuro de Angola ou O
Pharol do Povo, muitos contribuíram para a informação, elevação
cultural e promoção das línguas e culturas locais.
O primeiro jornal de africanos
chamava-se Echo de Angola (1881), inaugurando duas
décadas de frenética actividade jornalística (que se prolongaria, depois, até
aos anos 20) e que ficaria conhecida por período da imprensa livre
africana, terminando exactamente com a fundação de A Província de Angola
(1923), primeiro jornal de tipo moderno, industrial, que passou a quotidiano em
1926, perdurando ainda hoje as instalações ao serviço do Jornal de Angola.
A censura, que já funcionava, aprimorou-se e acabou com as últimas veleidades
de uma imprensa realmente democrática e livre. Na época florescente da imprensa
livre, apareceram jornais escritos simultaneamente em português e quimbundo,
como o Muen ‘cxi (= o senhor da terra) e o Mukuarimi (= o
«linguarudo»), dirigidos por Alfredo Troni. Nos últimos vinte anos de
Oitocentos, pugnaram por uma Angola autónoma, mais livre e desenvolvida,
jornalistas-intelectuais como Arantes Braga, José Fontes Pereira de Melo, Pedro
Félix Machado ou Cordeiro da Matta.
No dealbar do novo século, algumas
publicações literárias marcaram o desejo de emancipação dos «filhos do país»,
de que cumpre destacar as duas seguintes:
• Voz d’Angola — clamando no
deserto (1901), colectânea de artigos não assinados contra um artigo
colonialista;
• revista Luz e Crença
(1902), cujo segundo número saiu um ano depois.
Esta última era promovida pela
Associação Literária Angolense, cuja sigla, «Liberdade, fraternidade, igualdade»,
alerta para os ideais republicanos. Pugnava-se por um espírito de instrução,
autonomia política e crítica social e institucional.
Foram líderes e nomes cimeiros desta
geração, entre outros, Francisco Castelbranco, Silvério Ferreira, Paixão
Franco, Lourenço do Carmo Ferreira e Domingos Van Dúnem (não confundir com o
homónimo, nascido em 1925 e hoje embaixador do seu país na UNESCO).
É, pois, através dos jornais que os
letrados fazem a aprendizagem da escrita, vendo os seus escritos em letra de
forma, assim modelando a própria concepção de intervenção literária, que
ficaria marcada por essa prática intrínseca de concretude e explicitude, a não
ser quando toda a sorte de preciosismos (saídos do ultra-romantismo,
parnasianismo e decadentismo) tomava conta da efusividade lírica. Esse desígnio
jornalístico — ou melhor, de comunicação social, à letra —
marcaria decisivamente os escritores de África, que quase sempre assistiam à
divulgação dos seus textos através de compilações e antologias, antes de os
poderem ver estampados em livro, um objecto a que poucas vezes tinham acesso,
por dificuldades de vária ordem (censura, perseguição, pobreza, desleixo,
dispersão, etc., que foram aumentando em crescendo até à independência).
Ensino
A educação nas colónias portuguesas
registava, ainda a entrada dos anos 60, níveis baixíssimos. O analfabetismo
atingia, em Angola, quase 97%; em Moçambique, quase 98%; na Guiné-Bissau, perto
dos 100 %; só em Cabo Verde o nível era mais elevado, rondando os 78,5%. O
analfabetismo devia-se à política portuguesa de criar uma elite muito restrita
de assimilados para servirem no sector terciário, ao mesmo tempo que deixava as
populações entregues a si próprias, sem permitir o seu auto-desenvolvimento ou,
no pior dos casos, usando-as como mão-de-obra escrava ou barata.
Como escreveu o poeta angolano
António Jacinto, em «Carta dum contratado» (1950):
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu — Oh! Desespero! — não sei escrever também!
[…] No começo do século XIX, os
padres e párocos eram escassos nas colónias. Com o liberalismo, o ensino
passou, em 1834, para o domínio do Estado, tomando-se laico. A partir de 1869,
voltou a ser apoiado nas Missões. Todavia, o seu progresso foi lentíssimo.
Em Angola, os grandes centros
populacionais tinham escolas oficiais e particulares para brancos e nas zonas
rurais havia as missões para negros. O ensino manteve-se, durante muitos
séculos, exclusivamente a nível primário.
Três anos depois da instauração da
República, deu-se a separação da Igreja e do Estado, substituindo-se as missões
religiosas por laicas, para, seis anos mais tarde, as missões católicas serem
auxiliadas financeiramente pelo Estado, altura em que, em Luanda, foi fundado o
Liceu Salvador Correia. Em 1926, as «missões civilizadoras» foram abolidas
devido ao seu fracasso no terreno.
A língua usada nas escolas e fora
delas, por professores, missionários e auxiliares, era a portuguesa, que, com
as línguas nativas, servia para o ensino da religião. Mas, até II Guerra
Mundial, o objectivo da assimilação, perseguido em teoria pelas autoridades,
não teve expressão. Após 1945, a política governamental procurou acelerar a
assimilação, fazendo um esforço para generalizar o ensino primário, desenvolver
o secundário, sobretudo técnico, a educação agrícola e criando instituições
para a formação de professores. Todavia, o ensino superior, ao contrário de
outras colónias, inglesas ou francesas, apenas estava ao alcance de um número
muito reduzido de estudantes, sobretudo brancos e mestiços. Com a fundação e a
pressão exercida pelos movimentos nacionalistas, e logo depois do início da
luta de libertação nacional armada (Luanda, 1961), foram instalados os Estudos
Gerais, de nível universitário, a partir de 1963, nas cidades angolanas de
Luanda, Sá da Bandeira e Nova Lisboa, e na capital moçambicana, até hoje os
únicos territórios que deles beneficiaram.
Os próprios movimentos de
libertação nacional, de que resultariam os partidos no poder, após 1975, criaram
o seu ensino e alfabetização, que não tiveram um verdadeiro alcance de
massificação, devido a apenas atingirem os escassos milhares de militantes na
clandestinidade e faixas de população que os apoiavam. O MPLA, FNLA e UNITA
(Angola), o PAIGC (Guiné-Bissau e Cabo Verde) e a FRELIMO (Moçambique) não
tiveram tempo nem meios para, antes da independência, poderem substituir a
escola colonial. MPLA (1956), PAIGC (1956) e FRELIMO (1962) tinham
essencialmente preocupações políticas e militares, mas dedicavam uma atenção
especial às questões culturais. Os outros movimentos, nascidos de dissensões,
nunca tiveram qualquer preocupação nesse sentido. O MLSTP (de São Tomé e
Príncipe) nasceu pouco antes da independência.
Pires Laranjeira, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa
(vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta, 1995, pp. 18-21
3. LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM FENÓMENO DO URBANISMO
As literaturas africanas modernas, isto é, aquelas
que se exprimem na língua de colonização, têm a sua emergência indubitavelmente
ligada ao urbanismo […]
Colonização que, como é sabido, levou à Africa
tradicional factores de desestruturação que actuaram em todos os níveis da
organização cosmológica das sociedades negras. Sociedades cujos sistemas de
valores consuetudinários foram afectados, ou mesmo destruídos, pelo
cartesianismo da filosofia colonizadora que, aliada ao cristianismo de raiz
urbanizante, muito fez para despaganizar a cultura negra cujo animismo jamais
conseguiu entender. Essa despaganização era acompanhada pelo sacrifício da
ruralidade, enquanto imanência do binómio homem-natureza governado pela força
vital, pelo muntu, garante da ancestralidade geradora do iniciatismo
característico da civilização africana, abalando profundamente o mundo do homem
negro, que foi existencialmente agredido por «la violente césure qu’a
constituée l’intrusion de l’Europe chrétienne et cartésienne, et de l’Asie
musulmane, dans un monde aussi animiste», como observa Amadou Ly (1983:37).
Esse sacrifício da ruralidade abria caminho para o advento do urbanismo […]
A cidade é, portanto, a realidade emblemática da
colonização e do sistema colonial, a que ela conduziria, uma vez que, como
referia Kane, ela, a cidade, é simultaneamente um polo catalisador e difusor
dos valores culturais e civilizacionais de que os colonizadores eram
portadores. Nestes termos, ela representa já um centro de aliciamento para
todos aqueles que, no raio da sua influência lhe sentem o efeito, sujeitos que
estão, a partir daí, ao poder atractivo que a novidade da cidade e dos seus
costumes implica. A cidade passa, pois, a ser uma meta a atingir por aqueles
que vêem nela a possibilidade de melhoria do seu estatuto social e económico e
que, por isso, vão provocar um êxodo rural considerável, que vinha instalar-se,
normalmente, nas zonas circundantes dos núcleos citadinos, onde, entretanto, se
forjava uma burguesia constituída por brancos, alguns negros e alguns mestiços,
disposta a marcar o ritmo da evolução cultural, enquanto se engrossava o caudal
de despaganizadores que, atraídos pelos empregos gerados pela actividade
comercial e industrial urbana formavam os muceques ou os caniços
que punham a claro as assimetrias e as injustiças do sistema colonial cuja rede
se entretecia.
Transferido do seu espaço vital característico,
onde a sua identidade cultural e civilizacional não era interferida por
factores alienígenos, para um espaço outro, onde era forçado a outrar-se,
pensando, ilusoriamente, que lhe seria permitido o ingresso na cidade e a
participação na nova cultura, o homem negro vai acumulando frustrações, ao
mesmo tempo em que cresce nele a revolta pela marginalidade a que o votavam,
acentuando-se a sua dramática divisão interior entre a fidelidade de pertencer
ao mundo tradicional e a necessidade económica de ter de viver, segundo modelos
civilizacionais aniquiladores daquele. Esta dramática divisão é, por certo, a
responsável pela geografia física quase labiríntica desses «bairros de areia»
povoados por gentes das mais diversas proveniências etnolinguísticas e com as
mais diversas ocupações, desde o operário industrial ao empregado comercial, ao
amanuense, aos domésticos, às lavadeiras, aos cozinheiros, etc. O labirinto, em
que se vai transformando o espaço dessas «areias babélicas», como diz Luandino
Vieira, pode ser interpretado como uma garantia para os seus habitantes de que
nele seria possível preservar e cultuar os valores culturais que são
basicamente os seus, uma vez que o europeu, o outro, habitante da cidade
de asfalto, seria incapaz de descodificar tão complexa semiótica espacial e,
por isso mesmo, de perturbá-la com os ataques que, inevitavelmente, lhe
dirigiria.
Reduto da defesa de valores culturais e
civilizacionais comuns, apesar das diferenças etnolinguísticas que nele
coabitavam, o muceque interessa-nos literariamente numa tripla dimensão.
Primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um
proletariado que fecundou as sementes anti-coloniais que a própria colonização
gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de
língua de comunicação e que, usado por falantes de diferentes regiões
etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e
suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face característica da fala mucéquica,
ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão
portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de
inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial
de que o muceque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de
desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das
suas origens civilizacionais.
Esta tripla dimensão do espaço urbano — muceque —
está presente, desde as origens, nas literaturas africanas de expressão
portuguesa que, como outras literaturas africanas em língua de colonização, são
verdadeiramente um fenómeno do urbanismo, isto é, alimentam-se essencialmente
das contradições e da dialéctica sociocultural geradas pelo advento da cidade à
África. Aqui poderíamos ser levados a concluir que tais literaturas nada teriam
a ver com a literatura negra tradicional que, como se sabe, tem as suas raízes
na ruralidade, na Terra, o que lhe dá uma marca profundamente telúrica.
Todavia, conscientes de que «la voie la plus courte vers l’avenir est toujours
celle qui passe par l’approfondissement du passé» (cf. Césaire), alguns
escritores sempre procuraram trazer para o ambiente urbano, ou urbanizante, dos
seus textos essa Africa tradicional da qual o homem negro, despaganizado pela
colonização, não conseguia, nem queria, libertar-se.
Até aos princípios dos anos 1940, porém, não
existia ainda a oposiçào irredutível entre a cidade e o muceque. Apesar de
tudo, enquanto o asfalto não chegou, ainda foi possivel um certo diálogo entre
os dois espaços, como o atestam muitos textos africanos de expressão
portuguesa, onde a infância é evocada como uma idade quase edénica que se vivia
despreocupada das questões rácicas e sociais que o avanço avassalador do asfalto
veio a criar. A infância é, sem dúvida, um dos temas que, nas literaturas
africanas de expressão portuguesa, mais evidencia a sua origem urbana. Com
efeito, quase todos os poetas e ficcionistas dessas literaturas glosam o
binómio cidade-infância, como plataforma para uma escrita denunciativa e
insubmissa. Outros exemplos poderiam ser citados, mas bastará recordarmos o
título do primeiro livro de Luandino Vieira — A Cidade e a infância
(1960) —, para verificarmos até que ponto é que esse binómio teve importância
na emergência das literaturas africanas lusófonas. […]
Luanda é muito mais a Luanda dos muceques do que a
Luanda do asfalto, que a crescente europeização tornava cada vez mais
estrangeira aos filhos do país e àqueles que a adoptavam como mátria ou pátria
de criação literária. É esse, aliás, o sentido da conhecida «Canção para
Luanda», de Luandino Vieira:
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
— Luanda onde está?
no mar
na boca de todos nós:
— Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
— Xé, mana Rosa peixeira
responde?
responde?
— Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
«Ola almoço, ola alrnoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
«Ola almoço, ola alrnoçoéé
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»
— E você mana Maria quitandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
dóce dócinha»
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
dóce dócinha»
[…]
As casas antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
Meninos nas ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
— Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
— Luanda onde está?
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
— Luanda onde está?
[…]
Quitandeira: vendedora de frutas, hortaliças, aves, peixes, etc.
Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.
Maboque: fruto de casca dura, verde, comido simples ou com açúcar.
Luandino Vieira lançou, assim, a interrogação da busca
da cidade, aliada da infância, que o urbanismo colonial fez desaparecer. A
«fronteira do asfalto» e o tractor, símbolos da destruição desse espaço
existencial compartilhado por brancos, negros e mestiços, geraram, portanto, o
homem do muceque que, empurrado para a periferia geográfica e social da língua
de dominação, vingar-se-ia dela, forçando-a a africanizar-se para dizer,
através da literatura, a mensagem libertadora inspirada na tradição e apontada
para a revolução. O escritor africano de expressão portuguesa, senhor desta
nova fala que o urbanismo gerou nos muceques, conseguia, assim, ultrapassar, em
parte, o exílio das suas personagens, através duma escrita que virava contra o
colonizador a sua própria língua. […]
Parece-nos bem que a «tortura», a que o muceque
submeteu a língua de empréstimo, modelando-a até limites expressivos, por
vezes, impensáveis, neutraliza perfeitamente o exílio em que nasceu a escrita
da moderna literatura africana de expressão portuguesa. O urbanismo colonial
provocou, de facto, o exílio ao homem negro, despaganizando-o e afastando-o das
suas raízes culturais e civilizacionais, mas, ao mesmo tempo e em atitude, por
assim dizer, suicida, criou-lhe as condições para prometeicamente se vingar
dele, por meio duma genuína expressão literária que não encontra paralelo em
nenhuma das outras literaturas africanas em língua de colonização.
Salvato Trigo, 1984
Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
Ensaios de Literatura Comparada (Afro-Luso-Brasileira), Lisboa, Vega, s/d, pp. 53-60
Aparecidos em duas épocas distantes,
e portadores de experiências diferentes, Costa Alegre, originário de S. Tomé, e
Rui de Noronha, de Moçambique, podem ser considerados como os precursores da
literatura africana de expressão portuguesa, no domínio poético.
A obra de Costa Alegre, vinda a lume
em 1916, foi inteiramente escrita em Portugal, por voltas de 1880. O
arquipélago de S. Tomé encontrava-se na fase decisiva de mutação das suas
estruturas sociais, em que a iniciativa da direcção económica e o controle das
riquezas agrícolas eram intensamente disputados pelos colonos aos «filhos da
terra». A poesia de Costa Alegre não regista nenhum eco dessa tensão e não faz
nenhuma menção precisa à conjuntura insular. Ela reflecte uma forma de tomada de
consciência da condição do negro ferido na sua cor. Atingido no mais íntimo do
seu ser pelas humilhações que sofreu num meio social que lhe era hostil,
dilacerado pelo isolamento e por decepções amorosas, Costa Alegre
refugia-se num universo de autocondenação racial.
Tu tens horror de mim, bem sei, Aurora,
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Tu és o dia, eu sou a noite espessa,
Onde eu acabo é que o teu ser começa.
Não amas!... flor, que esta minha alma
adora.
És a luz, eu a sombra pavorosa,
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
Eu sou a tua antítese frisante,
Mas não estranhes que te aspire formosa,
Do carvão sai o brilho do diamante.
(Costa Alegre, «Aurora», in Versos,
1946, p.26)
Rui de Noronha exprime timidamente, nos anos trinta, os conflitos suscitados pela
sociedade em que se desenrolou a sua existência. Sensível ao espectáculo da
opressão, mas isolado na sua démarche, prisioneiro do seu misticismo, o
poeta viveu o drama da sua impossível realização, em tanto que assimilado.
Traduz em tom brando de lamentação
contemplativa a dor que lhe causava a vida das massas africanas, mas professa
claramente a resignação. Rui da Noronha apela, à sua maneira, para a libertação
africana, como testemunha o seu soneto «Surge et ambula»:
Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do
mistério.
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo...
Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…
O progresso caminha ao alto de um hemisfério
E tu dormes no outro o sono teu infindo...
[…]
Desperta. Já no alto adejam negros
corvos
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Ansiosos de cair e de beber aos sorvos
Teu sangue ainda quente, em carne de sonâmbula...
Desperta. O teu dormir já foi mais que
terreno...
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!
Ouve a voz do Progresso, este outro Nazareno
Que a mão te estende e diz: — Africa, surge et ambula!
Rui de Noronha esteve, contudo, longe
de lançar as bases de uma completa identificação com o seu povo.
Mário de Andrade, Antologia temática
de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp.3-4
E SUA IMPORTÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS AFRICANAS.
A Négritude lançou as suas
raízes até aos movimentos culturais protagonizados por negros, brancos e
mestiços que, desde as décadas de 1910, 20 e 30, vinham pugnando por um Renascimento
Negro (busca e revalorização das raízes culturais africanas, crioulas e
populares) principalmente em três países das Américas, Haiti, Cuba e Estados
Unidos da América, mas também um pouco por todo o lado.
A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
A ideia de Renascimento, Indigenismo e Negrismo surge nas Américas, principalmente nos Estados Unidos da América e nas Caraíbas, como consequência das Luzes e do Romantismo que levaram à abolição da escravatura, à assunção romântica do Volksgeist [o sentimento e o espírito do povo], à identificação da real composição do mosaico cultural de raiz popular e, logo, nacional, e, finalmente, à possibilidade de, após a Revolução Francesa, os povos supostamente poderem assumir a liberdade e a igualdade e se poderem pronunciar (ganhar voz) na ocorrência dos movimentos de independência ou do reconhecimento desta como alvará de igualdade cultural e social de todos os grupos sociais. Tal como no Renascimento europeu, os três conceitos e tipos de movimento político, cultural e literário implicam uma comum ideia de reconhecimento e revalorização do passado próprio de cada povo, este, no contexto específico das Américas, no sentido de grupo etno-social, ou seja, do negro e do indígena (este mesmo podendo ser o negro, na ausência de outro originário). De fora fica o branco, por ser considerado exactamente o causador da repressão, também cultural, que se abate sobre os outros dois, sem excluir a participação daqueles brancos que assumem como suas, mais nuns casos do que noutros, por mais ou menos tempo, as culturas deles.
O termo Négritude aparece no
longo poema «Cahier d’un retour au pays natal», de Aimé Césaire, poeta da
Martinica, que foi publicado na revista Volontés, 10 (1939). A palavra
passou a nomear o movimento que se desenrolava por toda a década de 1930,
nomeadamente em Paris, cadinho de estudantes, intelectuais e políticos que
marcaram profundamente a vida política e cultural do mundo negro. […]
Social e ideologicamente, a Négritude
constituiu-se como o processo de busca de identidade, de conduta desalienatória
e da defesa do património e do humanismo dos povos negros. Recusou a
assimilação a modelos externos à história negro-africana, embora consciente dos
contributos aculturativos, sobretudo nas cidades. A Négritude pretendia
a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos modelos e motivos
históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude distingue-se da
restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento
da raça e da cor negras, qualificando-as com valores reais e
simbólicos, reagindo, desse modo, ao racismo branco: «o sangue negro, o sangue
bárbaro» (Noémia de Sousa). Os triunfadores e mestres negros da diáspora e do
próprio continente africano são aclamados como paradigmas exemplares a seguir
pelos iniciados: Joe Louis, Jesse Owens (respectivamente, pugilista e atleta
norte-americanos), Louis Armstrong (jazzman norte-americano), Césaire
(negritudinista da Martinica), Toussaint Louverture (revolucionário haitiano
oitocentista). Langston Hughes, Claude Mckay (líderes literários do
renascimento negro norte-americano), Chaka (chefe guerreiro zulu), Nzinga (rainha
jaga que lutou contra os portugueses no início da colonização), Senghor (um dos
autores da Négritude).
Nega-se, dessa forma, não o valor das
culturas europeias (ou quaisquer outras), mas a sua dominação sobre as culturas
africanas, pelo poder imperial e colonial. Chega-se assim à recusa textual da
«música fútil/das valsas de Strauss» (Noémia de Sousa), afirmando ironicamente:
«cresçam sinfonias de Beethoven/e poemas que o amigo Mussunda não entende»
(Agostinho Neto).
A África, o negro e a Mãe-Negra (Mãe-África
ou Mãe-Terra) ocupam nos textos um lugar de destaque, como referências, alusões
ou temas, numa declaração humanística de povos até aí apresentados e
representados (na literatura colonial) como destituídos de história, cultura e
mesmo de sentimentos. Segundo a análise de Sartre, no prefácio à Anthologie
de la nouvelle poésie nègre et malgache (1948), de Senghor, dá-se a
revalorização (e a sobrevalorização) das culturas e modos de vida ancestrais
(tribais, clânicos), com o culto dos antepassados, o animismo e a respectiva
animização retórica da natureza, o pan-sexualismo vitalista, a visão eufórica e
ufanista das relações sociais e familiares nas tribos e no mundo rural e
natural. Ou seja, opõe-se ao mundo tecnológico e racionalista dos europeus o mundo
natural e sensitivo dos africanos, num posicionamento que receberia críticas
devastadoras dos homens empenhados na abertura de África ao mundo moderno,
através de revoluções socialistas.
Pires Laranjeira, Literaturas
Africanas de Expressão Portuguesa (vol. 64), Lisboa, Universidade Aberta,
1995, pp. 28-29
5.2. LITERATURAS EMERGENTES: NACIONALISMOS E
IDENTIDADE
Entre 1880 e os fins do século
passado, num clima de acesas lutas políticas, sucederam-se duas gerações que
marcaram a vida intelectual de Angola, particularmente dominada pelo
jornalismo. Aproveitando as possibilidades de expressão abertas pela lei
portuguesa sobre a liberdade de imprensa, aplicada efectivamente durante um
certo período na colónia, os angolanos lançaram jornais e revistas literários.
[…]
Fundada em Março de 1936, a revista Claridade,
primeira manifestação intelectual de conjunto da elite crioula, significou uma
viragem no movimento literário de Cabo Verde. Segundo os seus mais
ilustres representantes, Jorge Barbosa, Baltasar Lopes (aliás Osvaldo
Alcântara) e Manuel Lopes, a preocupação essencial residia na análise do
processo de formação social do arquipélago e no estudo das suas raízes. […]
Os escritores do movimento Claridade,
condicionados pela sua formação ideológica, adoptaram um ângulo de visão de
«classe» para abarcar o universo insular. Não se atacaram ao fundamento dos
dramas da terra (a seca, a fome e a emigração) e muito menos perspectivaram a
superação das atitudes resignadamente contemplativas. A sua poesia, dominada
pelo tema da evasão, afastou-se do inquérito aos sentimentos populares.
Como produto esteticamente acabado do elitismo, ela passou ao lado do clamor
das massas das ilhas.
Ao examinarem o processus de
aculturação em Cabo Verde, os animadores de Claridade e outros autores
afirmaram que as contribuições da cultura africana tendiam a reduzir-se ao
nível de sobrevivências ou a diluir-se em função do grau de instrução e de
urbanização do meio, enquanto os valores europeus, possuidores de uma maior capacidade
de resistência, se impunham e se generalizavam. […]
A evolução dos acontecimentos iria
demonstrar como as ilhas encontraram a sua verdade histórica, através da
unidade operada na luta solidária do guineenses e de cabo-verdianos, pela
libertação nacional.
Foi na linha deste pensamento que a
nova geração cabo-verdiana, após o severo julgamento dos Claridosos,
estabeleceu a ponte de ligação com os movimentos culturais que surgiriam em
Angola e em Moçambique. […]
Vamos descobrir Angola — tal foi, nesta perspectiva, a palavra de ordem lançada em Luanda,
em1948, por um grupo de estudantes e de jovens intelectuais. Coube a Viriato
da Cruz o mérito da sua formulação teórica e estética:
«O movimento», escreveu ele mais
tarde, «deveria retomar, mas sobretudo com outros métodos, o espírito combativo
dos escritores africanos dos fins do século XIX e dos princípios do actual.
Esse movimento combatia o respeito exagerado pelos valores culturais do
Ocidente (muitos dos quais caducos); incitava os jovens a redescobrir Angola em
todos os seus aspectos através dum trabalho colectivo e organizado; exortava a
produzir-se para o povo; solicitava o estudo das modernas correntes culturais
estrangeiras, mas com o fim de repensar e nacionalizar as suas criações
positivas e válidas; exigia a expressão dos interesses populares e da autêntica
natureza africana, mas sem que se fizesse nenhuma concessão à sede de exotismo
colonialista. Tudo deveria basear-se no senso estético, na inteligência, na
vontade e na razão africanas.» […]
Tomada no seu conjunto, a evolução
da moderna poesia africana de escrita portuguesa e crioula comporta três
fases essenciais: a primeira, a da negritude,
entendida como negação da assimilação ou, para utilizar a expressão de Aimé
Césaire, como «postulação irritada e impaciente de fraternidade».
A Ilha de Nome Santo, de
Francisco José Tenreiro (colecção «Novo Cancioneiro», vol. 9, Coimbra, 1949),
marca o ponto de partida. O poeta procura ligar, primordialmente, a sua
condição de homem insular ao mundo dos oprimidos, e revaloriza o património
cultural negro-africano. É uma voz solitária, então no exílio, que se levanta
para cantar S. Tomé e exaltar a negritude em língua portuguesa:
Quando cantas nos cabarés
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!
fazendo brilhar o marfim da tua boca
é a África que está chegando!
corres veloz
é a África que está chegando!
Segue em frente
irmão!
Que a tua música
seja o rumo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!
…para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!
irmão!
Que a tua música
seja o rumo de uma conquista!
E que o teu ritmo
seja a cadência de uma vida nova!
…para que a tua gargalhada
de novo venha estraçalhar os ares
como gritos agudos de azagaia!
[…] A segunda fase, suscitada
pelo alargamento e ultrapassagem da negritude, é o momento da particularização.
Os poemas precisam os contornos nacionais e incidem mais profundamente no real
social. A criação literária vai ritmando o desenvolvimento da consciência
nacional, quando se esboça a estrutura dos movimentos políticos. De 1953 a
1960, aproximadamente, a poesia apreende a trama dos acontecimentos que
caracterizam as, mutações na sociedade colonizadora. Daí a actualização
da sua temática.
O próprio enraizamento dos poetas no
chão nacional determina a convergência de temas e a unidade de tom. De todas as
colónias erguem-se vozes de denúncia: poetas cabo-verdianos asfixiam o desespero
de querer partir / e ter que ficar, vinculando-se definitivamente aos
diversos níveis das realidades africanas, Alda do Espírito Santo exige justiça
para os carrascos da sua terra.
E quando os povos de Angola, da Guiné
e de Moçambique retomam pela via armada a iniciativa histórica que modela o seu
devir nacional, entramos na terceira fase desta poesia: as balas
começam a florir, dirá Jorge Rebelo.
Mário de Andrade, Antologia temática
de poesia Africana 1, Lisboa, Sá da Costa, 1976, pp. 4-10.
Algumas linhas de afirmação desta
poesia devem ser destacadas.
1. Há uma evidente proximidade entre a
cultura africana escrita e a cultura europeia, proximidade esta bem
saliente no domínio da literatura.
No caso da poesia de Cabo Verde são evidentes as
afinidades com a poesia lírica portuguesa, nomeadamente nos modos como nela se
exprime o sentimento de insularidade. Este facto, efeito de aculturação,
visível não apenas na poesia daquelas ilhas deve-se, contudo, à difusão da
cultura europeia, através dos liceus que, a partir do princípio e de meados do
século, começaram a ser implantados nos pólos urbanos por toda a África.
A própria consciência de nação, que vemos ser
afirmada nesta poesia, origina-se no impacto do sistema de escrita ocidental
sobre uma cultura oral de origem tribal.
2. Vários movimentos e iniciativas
culturais empenhados na afirmação da cultura negra — não apenas africana — têm
origem em centros urbanos europeus e norte-americanos. É o caso das iniciativas
em torno da Casa dos Estudantes do Império sediada em Lisboa, do
movimento designado por Negritude, centrado em Paris e apoiado por
intelectuais europeus, como Sartre, do movimento Black Renaissance
surgido em Harlem.
Estes movimentos são responsáveis por
algumas linhas de sentido evidentes nestes poetas:
2.1. a intenção de denúncia da condição
do negro na relação com o homem branco;
2.2. a afirmação de uma identidade
própria da poesia negra, nalguns casos, especificamente
expressão do homem africano e com ele do próprio continente.
A propósito do último aspecto apontado, é de notar
a frequente referência a uma realidade telúrica cuja estranheza para o
homem europeu (claramente o interlocutor privilegiado desta afirmação) se
manifestará no léxico, sobretudo o relativo a nomes comuns. — e este aspecto é
da maior importância na poesia de Craveirinha — e em múltiplas descrições,
como, por exemplo, a que tem por objecto os rios de Moçambique, comparados com
os grandes rios europeus, no poema Hidrografia de Alfredo Margarido.
No poema Deixa passar o meu povo da poeta
moçambicana Noémia de Sousa, já não é o exotismo dos nomes que desencadeia a
presença de uma realidade, mas uma frase emblemática. “let my people go” capaz
de convocar a riqueza de um cultura inseparável da condição de negro por esse
mundo fora, da sua história e das mitologias dessa história.
Valerá a pena chamar a atenção para:
— a atmosfera em torno de uma exaltação de insónia:
a noite africana, as ondas da rádio, veículo do refrão “let my people...”
(frase emblemática do movimento Black Renaissance), estabelecendo uma corrente
com as ondas nervosas: “Nervosamente sento-me à mesa e escrevo [...] E já não
sou mais que instrumento […]";
— a importância simbólica do aparelho de rádio
trazendo para o interior da noite africana a música negra de outro continente:
“Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro / enquanto escrevo noite adiante / com
Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio / [...] / E enquanto me
vierem de Harlem / vozes de lamentação / [...] / Escreverei, escreverei, / com
Robeson e Marian gritando comigo: / “Let my people go” / [...]“.
(Procure o CD Jazz Heritage
Séries, vol. 1, Louis Armstrong, Louis and The Good Book, ed. M.C.A.,
1983. A canção 3, intitulada “Go Down Moses” (espiritual negro) tem como
refrão, constantemente repetido, essa mesma frase, “let my people go”. Esta
canção data do tempo da escravatura.)
Cadernos de
Literatura 10º Ano. Livro do Professor, Cristina Duarte,
Amadora, Raiz Editora, [1993], pp.76-77
UM SÉCULO DECISIVO
Temos o privilégio de assistir à
formação e desenvolvimento das literaturas africanas de língua portuguesa, em
mais de um século de escrita e de publicação. É com carinho e alegria que se contabilizam
todos os escritos e autores e se desenvencilham diacronias e influências.
Estamos possuídos pela ilusão de que, por tudo estar tão perto e ser tão pouco,
se torna fácil compreender e classificar para, ainda mais facilmente, teorizar.
Convém recordar, todavia, que, até tornar-se um sistema nacional, uma
literatura passa por fases de hesitação e de indefinição. As literaturas
africanas dos Cinco são escritas em português, língua de colonização, não
existindo tradição de escrita nas línguas africanas.
O primeiro prelo seguiu para Angola
em 1849. Um ano depois saiu o Boletim Oficial, incluindo já incipientes
textos literários como era de uso na época. Cerca de trinta anos mais tarde,
verifica-se o surto da imprensa livre angolana, na qual ensaiaram experiências
literárias e terçaram armas pela democracia, republicana intelectuais africanos
o portugueses. Literatura e jornalismo conviviam, no século XIX, a ponto de se
influenciarem mutuamente. A crónica e o panfleto de cariz doutrinário e
político faziam género. O folhetim narrativo agradava na colónia e obrigava à
reedição na imprensa da metrópole colonizadora.
Africanos, portugueses e brasileiros
publicavam nos espaços comuns dos almanaques, boletins, jornais, revistas a
folhetos. Não tinham surgido ainda as designações de literatura angolana,
moçambicana ou são-tomense com carácter de sistema nacional, mas a escrita já
deixara de ser espaço de europeidade absoluta para se tornar contaminação
relativa de línguas. De facto, poetas portugueses o angolanos intercalavam no
texto em português, mais extenso, frases, diálogos, versos, lexemas em língua
banta (quase que exclusivamente o quimbundo). A integração é perfeita, na
coerência do sentido e da sonoridade e na coesão dos segmentos e ritmos. Poemas
há soando aos ouvidos como se produzidos numa só língua natural.
O trabalho literário unifica as
línguas, como que galvanoptastizando a substância da expressão. Tal efeito de
produtividade só é possível numa poetogénese conseguida à custa da integração
antropocultural do intelectual português, ou seja, e para utilizar uma
curiosíssima palavra do vocabulário colonialista, à custa da sua cafrealização.
Foi o que aconteceu com o português Alfredo Troni, escritor, jornalista
e advogado de filiação socialista proudhoniana e republicana, desterrado para
Luanda, onde desenvolveu profícua e incalculável agitação cultural e cívica.
Por seu turno, intelectuais africanos como Cordeiro da Mata
empenharam-se em trabalhos de pesquisa linguística, sociológica e etnográfica
que favoreceram uma atmosfera de aprofundamento do saber sobre as realidades
africanas, contribuindo para que a literatura pudesse perder, a pouco e pouco,
o lastro negativo do exotismo e do ultra-romantismo serôdio.
Em todos os poetas do século XIX,
mantém-se a rima final e, em, grande percentagem, a medida da redondilha maior,
características tradicionais de muita poesia popular europeia. Sabemos como
esse tipo de procedimento literário não procede da tradição popular africana.
Só muito mais tarde, já na década de 30, é que a geração da Claridade
caboverdiana abandona esses princípios poéticos, enfileirando no cultivo do
verso livre, aproveitando a lição dos modernismos português e brasileiro. Mas
os escritores caboverdianos, nessa altura, não reivindicavam propriamente uma
especificidade africana, se bem que fosse inequívoco o seu sentido da
caboverdianidade, da literatura enquanto sistema de comunicação com poder
autonómico face à situação política e jurídica do arquipélago.
Depois de terem prestado homenagem à
tradição literária portuguesa, de Camões ao parnasianismo, os escritores
africanos, no segundo quartel do século XX, trocam de paradigma, inspirando-se
nos brasileiros e norte-americanos A introdução do ensino laico nas
colónias e a vinda de estudantes para Portugal incrementaram notavelmente uma
nova mentalidade cultural sustentada por ideologias como o socialismo
anarquista, o republicanismo, o proudhonismo e, mais tarde, o pan-africanismo.
Nas colónias, a intervenção maçónica de exilados e desterrados portugueses foi
decisiva no movimento operário, com repercussões na intelectualidade, como em
Moçambique. A literatura ganha corpo nacional consoante vai trocando o corpo da
negra e da mestiça pelos do contratado e do branco, expondo-lhes as alienações e
as misérias humanas. Se tomarmos a narrativa angolana como sintoma dessa
evolução progressiva e progressista, verificamos que o espaço físico e social
progridem no mapa humano e geográfico à medida que se consuma a diacronia: a
narrativa Nga Mutúri, de Alfredo Troni, tem como cenário principal uma
Luanda permissiva e condescendente, onde se cruzam personagens típicas de todas
as profissões e escalões sociais, nomeadamente o sector terciário; o romance de
António de Assis Júnior O Segredo da Morta desenrola-se entra costa
marítima e uma faixa interiorana que não ultrapassará os trezentos quilómetros,
com percursos fluviais e terrestres, carregadores e comerciantes, episódios
rocambolescos e frases em quimbundo; a acção da trilogia de Castro Soromenho (Viragem,
Terra Morta e A Chaga) passa-se no interior de Angola e novas
personagens afluem à narrativa angolana: chefes tribais, funcionários
administrativos, exrevolucionários retraídos, comerciantes do mato, cipaios,
etc.
Quando os poetas caboverdianos
dispensam as alusões clássicas greco-latinas ou renascentistas (em que era
pródigo um José Lopes) e assumem a modernidade discursiva e textual,
configurando efeitos de referencialidade que passam pela concreticidade da
denúncia frontal ou velada da exploração, opressão e repressão do sistema
colonial, a literatura deixa de poder integrar pacificamente as antologias e
histórias da literatura portuguesa. Marcada por transparentes desejos de
emancipação, liberdade, autodeterminação e independência, a literatura africana,
em geral, fala-nos de conflitos sociais, do estatuto do colonizado, de guerras
(de guerrilhas) e de revolução, ainda que, muitas vezes, sob o manto diáfano da
criptografia.
Até 1942, ano em que Tenreiro publica
a Ilha do Nome Santo, decorre aproximadamente um século, decisivo para a
formação das literaturas africanas de língua portuguesa. A escrita dessas
literaturas denuncia as hesitações entre uma norma de raiz escolar europeia
(lisboeta ou conimbricense) e um bilinguismo textual inusitado e causador de
eleitos de estranheza no público acaciano. A intencionalidade de ruptura no
circuito comunicativo preside à elaboração de alguns textos posteriores, como
se pode ver nas primeiras edições de José Luandino Vieira, nas quais as
epígrafes, em quimbundo, não eram traduzidas. Nos poetas do século XIX, o
quimbundo é traduzido no próprio poema, como acontece, por exemplo, com Kicôla!,
de Cordeiro da Mata. Nesse tempo havia condições propícias a tais práticas
dialógicas, que a 1 Guerra Mundial alterou bruscamente, modificando a
estratégia universal em relação às colónias.
Encerrado o ciclo da imprensa e da
literatura livres de condicionalismos políticos, abriram-se as portas à
literatura colonial, apoiada por organismos do Estado português. Uma torrente
de prosa exótica sufocou a metrópole e ratificou o espírito tarzanístico. Os
intelectuais africanos retiraram-se para as suas associações culturais ou
políticas disfarçadas de recreativas e só muito esporadicamente criaram algo de
novo, na tradição do século XIX. Foi necessário esperar por 1936, em Cabo
Verde, 1942, em Portugal, e 1948, em Angola, para que as literaturas africanas
de língua portuguesa não mais deixassem de ter sequência. Ao surto definitivo
dessas literaturas não são alheios os acontecimentos políticos e militares de
1936 a 1945.
De facto, a partir daí, é notório o
enfeudamento à linha realista, «engagé» e combatente, fartamente influenciada
pelo afro-americanismo, o pan-negrismo, o pan-africanismo, a negritude e o
neo-realismo. Mário Pinto de Andrade, integrando o moviemento Mensageiro, ainda
esboçou uma escrita poética em quimbundo, que logo abandonou, na altura talvez
para não atiçar ou ratificar tribalices. O poema resultante, junto com dois
outros de Bernardo de Sousa e João-Maria Vilanova, é a excepção que confirma a
regra da língua portuguesa.
A edificação das literaturas
africanas de língua portuguesa acompanha a construção de um novo poder
político, primeiro clandestino e, depois, triunfante. Os homens que escrevem
são os mesmos que pensam e que politicam. E fazem-no em português, domesticando
a língua em função das suas virtualidades e finalidades, criando literaturas
nacionais numa língua internacional.
O século que vai de 1850 a 1950 foi
decisivo para a formação dessas literaturas. Os últimos trinta e cinco anos têm
sido decisivos para o seu desenvolvimento. Com o advento da luta armada,
três tendências se esboçaram, vindo a concretizar-se em obras específicas: Iiteratura
de combate (de e para a guerrilha), de «ghetto» (publicada, sob a
forma críptica, nas próprias colónias) e de diáspora. Os casos de
Pepetela, Manuel dos Santos Lima, João-Maria Vilanova, Costa Andrade, Jorge
Rebelo e Sérgio Vieira ilustram a primeira tendência. O Jofre Rocha de Tempo
de Ciclo, David Mestre com Crónica do Ghetto ou Corsino Fortes
documentam a literatura de «ghetto», que tanto pode ser alusão ao beco (com ou
sem saída) da grande cidade colonial, como metáfora do isolamento insular. A
terceira tendência tem no Coração em África, de Tenreiro, ou no poema
«Havemos de voltar», de Agostinho Neto, a confirmação de que a diáspora é
saudosa mesmo das terras que pouco pisou (como Tenreiro) e messiânica até à
vitória final (como Agostinho Neto). Há também uma literatura rústica, de
fundamentação etnológica, como no caso de A Konkhava de Fheti, de
Henrique Abranches, ou de experiência pessoal, como em Uanhenga Xitu.
Os títulos da literatura caboverdiana
elucidam-nos acerca do obsessivo terra-longismo, que Manuel Lopes caracterizou
lapidarmente: «a saudade das terras que não conhece.» É o apelo da distância e
do desconhecido, muito forte para quem vive e escreve nos chamados meios
pequenos insulares: «Hora di bai» (poema de Eugénio Tavares) e Hora di Bai
(livro de Manuel Ferreira): «Terra-Ionge», de Pedro Corsino Azevedo; Poemas
de Longe, de António Nunes; Marinheiro em Terra, de Daniel Filipe; Linha
do Horizonte, de Aguinaldo Fonseca; Cais Dever Partir, de Nuno
Miranda; Caminhada, de Ovídio Martins; «Caminho longe», título de poemas
de Ovídio Martins, Onésimo da Silveira, Gabriel Mariano e Terêncio Anahory e
ainda de romance de Nuno Miranda; «Carmin lon» poema em crioulo interpretado
por Bana; «Carta de longe» de Gabriel Mariano; Horizonte Aberto, livro
de Sukre D’Sal; Viagem para Além da Fronteira, de Teobaldo Virgínio; Distância,
também de Teobaldo Virgínio; Beija do Cais, ainda do mesmo autor.
Finalmente, o percurso inverso, de retorno, em Cais-do-Sodré té Salamansa,
de Orlanda Amarílis.
Apostrófica, exaltante, apologélica,
virulenta, denunciadora, a literatura africana pode ser excessiva e
grandiloquente como os poemas negritudinistas de Francisco José Tenreiro,
reflexiva e serena como a Sagrada Esperança, de Agostinho Neto, barroca
e neurótica como a ruptura discursiva e textual de Luandino Vieira, humorística
e cínica como escárnio de João Pedro Grabato Dias. Contida, comedida,
tranquila, expositiva, a literatura pode dar-se como fingimento extremo e
simular o real por inteiro, como na máscara do Muana Puó, de Pepetela,
burilar a palavra até à exaustão, para lhes extrair sugestões e alusões étnicas
e oníricas, como em Angola Angolê Angolema, de Arlindo Barbeitos,
conotações e ambivalências co-textuais, como em Monção, de Luís Carlos
Patraquim. Enfim, a literatura africana pode vociferar «tuji, patrão», como no
poema de João-Maria Vilanova, retomando as práticas bilinguistas de seus avós,
ou render homenagem aos «grupos de patriotas portugueses/operando na Metrópole
ou no estrangeiro – os do Socorro Vermelho/e os das Brigadas Revolucionárias,
tal a nº 2,/que a base secreta da OTAN destruiu no Pinhal do Arneiro,/no lugar
dito Fonte da Telha», como se pode ler no Primeiro Livro de Notcha,
discurso V, do caboverdiano Timóteo Tio Tiofe.
As literaturas formam-se e
desenvolvem-se como sistemas nacionais antes das independências políticas.
Desde a publicação de Espontaneidades da Minha Alma, elas têm 136 anos
de vida nem sempre activa. Desde a publicação de Nga Mutúri, passou
pouco mais de um século. Somente meio século nos separa do primeiro número da
revista Claridade. Do meio do século para cá, os poetas profetizaram a
mudança: «veemente ressurreição!» (Osvaldo Osório); «veemente de ressurreição!»
(Rolando Vera-Cruz); «nova gestação» (David Mestre); «sonhando co’a vida»
(João-Maria Vilanova) «edificam novos tectos» (Cândido da Velha); «a alforria
ansiada» (Jofre Rocha); Tempo do Ciclo (Jofre Rocha); «alvorecer de
esperança» (Jofre Rocha); «exigindo novas vestes» (Álvaro Novais); Sagrada
Esperança (Agostinho Neto); Vidas Novas (José Luandino Vieira);
«nova Aurora» (Yolanda Morazzo); «llhas renascidas / nuvens libertas» (Arménio
Vieira); «gritarem de esperança» (Tomás Medeiros); «fomos nós o sonho» (Costa
Andrade).
Cumpriu-se a alforria ansiada e já as
literaturas africanas se defrontam com os novos poderes: Mayombe, de
Pepetela, publica-se porque o Velho dá o seu consentimento contra ventos e
marés; Os Anões e os Mendigos, do Manuel dos Santos Lima, a maior
diatribe ficcional desde sempre, sai com a chancela de uma editora do Porto e o
autor nunca recebeu resposta a pedidos de leitura do original que enviou a
outras editoras e instituições, não só de Portugal; a pretexto de uma
representação (gravosa para o Presidente angolano) da peça No Velho Ninguém
Toca, o autor, Costa Andrade, esteve preso durante mais de um ano em
Luanda. Isto só pode significar que as literaturas africanas estão mais vivas
do que nunca, e os escritores, críticos como sempre. Não sei quando começou nem
quando terminará o século decisivo das literaturas africanas de língua
portuguesa, mas estamos a vivê-lo: une a paixão amorosa e a (pa)ciência do texto se conjuguem em verbos mais que perfeitos!
Pires Laranjeira, Literaturas
Africanas de Língua Portuguesa, Lisboa, F. C. Gulbenkian,1987.
LUSOFONIA, Plataforma de apoio ao estudo da língua
portuguesa, José Carreiro, 23-04-2008 < http://lusofonia.com.sapo.pt/LA.htm
>
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