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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

MEMORIAS XUKURU E FULNI-Ô DA GUERRA DO PARAGUAI - Artigo

(publicado in Ciências Humanas em Revista v.3, nº2, 2005, UFMA, São Luís, p.51-58) MEMORIAS XUKURU E FULNI-Ô DA GUERRA DO PARAGUAI Edson Silva1 A Guerra do Paraguai: abordagens recentes O conflito, que se convencionou chamar a Guerra do Paraguai (1865-1870), vem sendo, nos últimos anos, objeto de vários estudos, que baseados em amplas pesquisas documentais, possibilitaram novas abordagens sobre o confronto armado que sacudiu o Cone Sul no quartel final do século XIX. Nessa perspectiva, foram superados os trabalhos tradicionais que enfatizaram aspectos militares, bem como as biografias de heróis oficiais da Guerra do Paraguai (GP). Foi deixado de lado também o enfoque positivista republicano que acusava o Brasil monárquico pelo genocídio imposto ao Paraguai. Assim como foi abandonado o enfoque marxista de fins da década de 1960, que enfatizava um suposto nacionalismo progressista paraguaio, e apontou o expansionismo do imperialismo britânico como responsável pela Guerra. O conflito passou a ser visto como regional, uma disputa entre os países envolvidos pela hegemonia na região do Prata .2 Com os estudos mais recentes foram evidenciados outros aspectos da Guerra. Através dos novos enfoques, foram discutidos as formas do recrutamento, a participação negra de escravos e libertos, de mulheres, as imagens (fotografias, pinturas e caricaturas) da guerra, etc. Todavia ainda foi pouco estudada a dimensão da participação indígena naquele conflito, bem como as narrativas e as memórias resultante dela. Nos novos estudos sobre a GP as análises sobre o recrutamento são unânimes em apontarem que no início do conflito a perspectiva de sua curta duração, somando-se a imagem construída de uma guerra da civilização moderna contra a “barbárie” paraguaia indígena guarani, que deveria ser derrotada, motivaram o alistamento de muitos para participar no front de combates. Com o prolongamento da Guerra, além de manifestações de protestos em todas as províncias do Brasil, tornou-se difícil o recrutamento de novos soldados, inclusive com a resistência da Guarda Nacional. Mesmo tendo a libertação de escravos como uma primeira solução para suprir as necessidades de combatentes, com a continuidade do conflito, o Governo Imperial através de decreto criou e incentivou os corpos de Voluntários da Pátria. Ainda assim, em uma fase crucial da Guerra, quando depois de seguidas derrotas os aliados partiam para batalhas ofensivas decisivas, os entusiasmos patrióticos minguaram e os alistamentos diminuíram. 3 Nesse momento foi usado o velho e conhecido método do recrutamento forçado, que atingiu os membros do partido opositor ao que estava no poder em cada província, os contrários a ordem política e social vigente, os considerados desordeiros, perigosos, os presos e condenados por crimes, e principalmente a população pobre, os habitantes das cidades do interior, das zonas rurais, a exemplo dos índios no Nordeste. Para fugir das perseguições das forças legais, os considerados como potenciais “soldados-voluntários” elaboraram diversas estratégias contra o recrutamento forçado. A análise de fontes documentais bem como de relatos de memórias indígenas sobre a GP, a respeito do recrutamento, da participação e o retorno dos sobreviventes do conflito, nos possibilita evidenciar os significados das elaborações dessas narrativas para a história dos povos indígenas no Nordeste. Tendo presente que, o uso de fontes das fontes orais não apenas permite incorporar indivíduos ou coletividades ate agora marginalizados ou pouco representados nos documentos arquivisticos mas também facilita o estudo de atos e situações que a racionalidade de um momento histórico concreto impede que apareçam nos documentos escritos. Assim, portanto, as fontes orais possibilitam incorporar não apenas indivíduos a construção do discurso do historiador, mas nos permite conhecer e compreender situações insuficientemente estudadas ate agora, (Alcazar i Garrido, 1992/1993, p. 36), Faremos uma reflexão a partir de documentos escritos e fontes orais sobre as memórias indígenas Fulni-ô e Xukuru do Ororubá a respeito da GP. O recrutamento indígena Na documentação da Diretoria dos Índios em Pernambuco encontramos diversos ofícios que se referem ao processo de recrutamento de índios para a GP. É clara a truculência empregada pelos Diretores das Aldeias no alistamento forçados dos índios como Voluntários da Pátria. As justificativas são sempre a manutenções da ordem e da paz nas aldeias. A exemplo da punição para acusados ou envolvidos em assassinatos, como ocorreu em 1865 quando o Diretor Parcial da Aldeia de Barreiros que informava ao Presidente da Província estar enviando 10 e não 15 recrutas e que diante da recusa de índios como “voluntários”, afirmava “Se V. Exª. o determinar, mandarei recrutá-los”.4 Encontramos acompanhando um ofício datado de 1865, uma relação com nomes de 82 índios “Voluntários da Pátria” da Aldeia de Cimbres, onde habitam atualmente os Xukuru do Ororubá, em Pernambuco. Informa ainda o documento que os alistados estavam deixando seus soldos em consignação para suas famílias.5 Mas o recrutamento que aparece como uma ação tranqüila, é desmascarada na leitura de um ofício do ano seguinte, enviado ao Presidente da Província pelo do Diretor Geral dos Índios, com a queixa de um índio de uma numerosa família, pedindo dispensa de dois filhos seus que “forão forçados a se alistar como Voluntários da Pátria”.6 Os aldeados em Cimbres por diversos meios procuraram se livrar do recrutamento obrigatório. A exemplo do índio José Carneiro da Cunha, que em 1865 solicitou e conseguiu de 6 moradores de Olho d’Água, atestados reconhecidos em cartório, confirmando ser o seu filho Laurentino José Carneiro portador de gôta, doença que o impedia de ser recrutado . Posteriormente, Laurentino através de um Requerimento, pediu e recebeu do Tenente Joaquim Almeida de Carvalho, Diretor do Aldeamento de Cimbres, um “Atestado” também reconhecido em cartório, confirmando a condição de índio do solicitante, informando ainda o documento que os índios não eram “sujeitos a recrutamento.”7 O índio Laurentino “a fim de pedir dispensa do serviço para o qual foi designado”, tendo sido “detido na Vila de São Bento”, dirige um requerimento outra vez ao Diretor de Cimbres, justificando seu pedido “por ser índio e não ser qualificado”. Atendendo ao pedido, o Diretor por meio de um “Atestado” confirmou a residência de Laurentino na Aldeia de Cimbres, afirmando ainda que ele não teria condições para compor as tropas da Província a serem enviadas a GP.8 Possivelmente a documentação do índio Laurentino foi ignorada pelas autoridades, e por essa a razão o seu pai, afirmando ser um agricultor sexagenário com dificuldades de trabalhar, enviou um requerimento ao Presidente da Província, pedindo a liberdade do seu filho que era “o responsável pelo sustento da família”, pois com o seu recrutamento ficaria difícil para seus familiares aldeados em Cimbres sobreviver sem a sua ajuda.9 O desamparo em que se encontrava em 1866 as famílias dos índios de Alagoas enviados para a GP, era motivo de recusa dos novos voluntários. Informava o Diretor Geral dos Índios que escreveu aos diretores das aldeias com uma “ordem de recrutamento dos índios que estiverem ao seu alcance”10. Em outra correspondência ao Presidente da Província, insistia o Diretor Geral na necessidade de pagar os vencimentos às famílias, pois sem a vantagem pecuniária 40 índios da Aldeia de Jacuípe que atenderam a convocação para o recrutamento, “esfriarão todos”.11 As fugas para se esconder nas matas ou desaparecimento do seu local de moradia, as deserções de tropas já formadas, as declarações de doenças, os casamentos até com mulheres mais velhas, homens que se vestiam de mulher, os ataques de grupos armados às forças legais que traziam recrutados a força para a capital, ou ataques a cadeias do interior libertando os presos a serem enviados como soldados para a guerra, rebeliões, etc. foram as muitas formas de resistências ao recrutamento que ameaçaram a ordem social vigente.12 Entre os índios Xukuru do Ororubá da cidade de Pesqueira, os Fulni-ô (anteriormente conhecidos como Carnijós) de Águas Belas ambos no interior de Pernambuco, os Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios e os atuais Wassu de Jacuípe, em Alagoas, encontramos muitos relatos orais, memórias sobre a GP. Selecionamos aqui para a nossa discussão, apenas alguns trechos desses relatos. Memórias Fulni-ô sobre a GP O índio fulni-ô Elpídio de Matos, com 88 anos relatou o que ouviu dos seus antepassados sobre a GP, “A Guerra do Paraguai eu ouvia dizer que foi uma guerra que era para se acabar mesmo. Foi 50 e tantos índios... tudo foi morto lá. Meu avô foi para a GP. A história era contada pelos que voltaram. Meu avô não voltou, morreu”. Sobre o recrutamento, Elpídio em sua narrativa confirmou o que aparece na documentação escrita: “Os índios daqui, eles foram a pulso!. Eles foram a pulso para essa tal da GP. Quem não queria ir, foi um puxão, eles foram na marra. Pegaram a pulso. E foi uma poção de gente dessa cidade também, foi pobre e rico”. Elpídio relatou outras lembranças do recrutamento forçado e as resistências a ele, Disse que tinha deles menino com 12 anos que já era uma rapaizote, vestia roupa de mulher para não ir. Porque não podiam levar mulher para a guerra! Então não era só índio, era qualquer pessoa! Disse que vestia roupa de mulher para ficar como mulher para não ir para a Guerra, para a policia não pegar. Foi índios de outras aldeias também. Quem foi vivo nessa época foi. Aquilo ali foi para muitos pobres e só não ia o rico! Mas os pobres ia na marra! Quem, correu se escondeu no mato! Quando eles pegavam era só índios. Pegava e amarrava, foram amarrados encangados. Foi 20 e tantos índios daqui, encangados13 Memórias Xukuru: a bravura de Maria Coragem e dos “30 d0 0rorubá” Sabe-se que diversas mulheres, prostitutas, esposas e seus filhos menores acompanhavam seus maridos-soldados na GP. Mulheres que seguiam as tropas e “não tinham medo de coisa alguma”, e nas frentes de batalhas ora socorriam os feridos improvisando ataduras com suas próprias vestes, ora combatiam ao lado dos homens.14 O povo Xukuru do Ororubá dentre os vários relatos acerca da Guerra, falam sobre “Maria Coragem”, uma índia que se destacou nos campos de batalha, “...foi Coragem, uma mulher chamada Coragem, porque o nome dela não era coragem, chamaram depois que ela foi para a Guerra, pela coragem dela.”15 Nas narrativas dos Xukuru são lembrados enfaticamente “os 30 do Ororubá”, combatentes que se destacaram em uma das batalhas na GP, Eu ouvi falar assim, é uma história nossa que nós temos dizendo que os Xukuru foram para a GP brigarem. Foram 30, morreram 12, voltaram 18. Então eu ouvi falar, então foi os índios do Brejinho, não lembro nem aonde mora, nem o nome deles. Eles são da família dos Nascimento, lá na Aldeia Brejinho. E foi mais uns outros de outras aldeias Xukuru, e foi uma índia chamada Maria Coragem também. O mesmo narrador fala sobre os chamados bravos do Ororubá, E lá eles brigaram na Guerra... aí levaram a bandeira... e pediram para eles irem buscar. Então, eles foram, eles já tinham passado... e eles chegaram na beira do rio, e eles já tinham atravessado o rio, eles entraram no mato, cortaram madeira, cortaram cipó, fizeram um barco, foram lá, cortaram tudo de facão e trouxeram a bandeira para a Princesa Isabel.16 A respeito do relatado acima, um pesquisador escreveu que o fato ocorreu durante a Batalha de Tuiuti, um dos maiores embates da GP, quando o inimigo arrebatou a bandeira do '30 de Voluntários’, batalhão integrado pelos nossos índios xucurus. O Comandante, Ten. Cel. Apolônio Peres Cavalcanti Jácome da Gama, em assomo de desapontamento, bradou para os seus soldados (os nossos índios) que retomassem a bandeira e pouco depois a companhia de guerra que partira no cumprimento da ordem, regressava reduzida a 10 ou 12 homens trazendo o nosso pavilhão a despeito de quase transformado em farrapos.17 Os Xukuru relatam também que os seus antepassados voltaram com condecorações da GP, “... o Irmão da Hora trouxe um terno, de reis. Digo, porque o terno eu vi. De coroa, galão e todo, porque ganhou esse prêmio Irmão da Hora, Antonio Molecão e Antonio Tavarinho”.18 Em seus relatos, os Xukuru falam ainda de quepes, medalhas, espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços militares, além dos “títulos de terra”, trazidos por seus antepassados que retornaram da GP. Autores destacam o “heroísmo” do Cabo Zeferino da Rocha, morador do “Sítio Goiabeira no alto da Serra” [do Ororubá], veterano da GP, membro do “Trinta de Voluntários”, composto de índios xukurus, “todos condecorados depois com medalhas de Guerra e Bravura”.19 A “nossa terra a custa do nosso sangue”. “Nós vencemos a guerra!” Quais os significados que os atuais indígenas no Nordeste dão à participação de seus antepassados na GP? Sabe-se que finda a Guerra o Governo Imperial, como recompensa, destinou além de honrarias militares, lotes de terras aos ex-combatentes. Quais leituras sobre as recompensas que seus antepassados receberam por participarem na Guerra, fazem os índios que desde o último quartel do século XIX enfrentam conflitos com tradicionais latifundiários invasores das terras indígenas, muitos deles descendentes de vereadores encastelados nas câmaras municipais que solicitavam insistentemente aos governos provinciais e ao Governo Imperial as terras dos antigos aldeamentos? Os trechos de alguns depoimentos nos dão uma idéia dessas leituras e seus significados. O fulni-ô Elpídio afirmava: Aqui foi dado com o Rei, foi o sangue que os nossos troncos derramaram numa guerra que o Sr. tem visto falar, GP. Nisso aí morreu 20 e tantos índios já nessa Guerra. Então o Rei queria dar uma quantidade de dinheiro, muito, pelo sangue que derramaram. Aí dizem que a Princesa Isabel que era a mulher senhora dele, desse Rei, disse prá ele ‘Não! Por dinheiro não, que o dinheiro se acaba. Agora vamos um dá um terreno prá eles’... ... ... disse que está escrevido com tinta de ouro, essa assinatura que a Princesa Isabel assinou. E de lá prá cá tomemos orgulho e graças a Deus a gente vive e eles não tomam mais não! (grifamos). Entre os Xukuru encontramos relatos semelhantes, Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os Trinta dos Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram na guerra lá venceram... mas quando veio de volta, passaram no RJ, o rei e a rainha não tinham com que agradecer a eles e disse: ‘vocês faça sua divisão de terra, é patrimônio que eu vou assinar pra vocês’ (grifamos).20 Ou ainda de forma mais explícita na fala do Vice-Cacique Xukuru, Olhe, a dádiva que da Guerra foi oferecido dinheiro e ouro. Só que para os índios, dinheiro e ouro não eram interessantes, interessante era a terra. Aí eles disseram que ao invés de ouro eles queriam uma coisa que nunca se acabasse, que era a terra que estava na mão de algumas pessoas que não deixavam eles trabalhar. Então, eles queriam a terra para eles viverem, os filhos deles viverem e os filhos dos filhos deles. Isso aí foi o pagamento que eles receberam, que eles pediram.21 (grifamos). Questionado sobre qual foi a importância da participação dos seus antepassados na GP, o Pajé Sr. Zequinha, uma das figuras centrais no processo de reconhecimento dos marcos para o processo de demarcação do território Xukuru nos anos 1990, afirmou, Foi importante porque na época aqui existia uns coronéis, uns capitães, uns tenentes. Só bastava, era o pessoal que podia comprava aquelas patentes de tenente, de capitão e aí massacrando os índios. Depois que eles vieram, melhorou. Trouxeram os títulos, aí eles não puderam... eles tomavam a terra, eles tomavam, “aqui é meu, é meu e pronto, acabou-se Compreender o significado das narrativas sobre a Guerra do Paraguai para os Xukuru, é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas, possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (Alberti, 2004, p.25). Essas experiências foram/são marcantes porque foram intensamente vividas. As narrativas do povo Xukuru nos ajudam ainda “entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”. (Idem, 26). O pesquisador francês Michael Pollak, ao discutir as relações entre memória e identidade social, afirmou ser perfeitamente possível que “por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada” (Pollak, 1992, p.2). Assim, a partir dos relatos acima, é possível entender das leituras que indígenas fazem sobre a participação de seus antepassados na GP, dentre outros prováveis significados, que eles lhes deixaram como herança a vitória da Guerra, transmudada também em uma certeza da vitória da guerra em muitas batalhas por suas terras, pela reivindicação e reconhecimento de seus direitos históricos, que lhes garante o futuro. Apoiados na memória e a história que compartilham sobre o passado, da releitura que fazem de acontecimentos que escolheram como importantes, os Xukuru (re)constroem sua identidade para afirmarem seus direitos enquanto um povo indígena.

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