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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

“Nossa Mãe Tamain”. Religião, reelaboração cultural e resistência indígena: o caso dos Xukuru do Ororubá (PE)- Artigo

(publicado in: BRANDÃO, Sylvana. (Org.). História das religiões no Brasil. Recife: Editora Universitária UFPE, 2002, vol. 2, pp. 347-362) “Nossa Mãe Tamain”. Religião, reelaboração cultural e resistência indígena: o caso dos Xukuru do Ororubá (PE) Edson Silva Em memória do Cacique Xicão e do reconhecido líder Chico Quelé, brutalmente assassinados em 20/05/98. e em 23/08/01, a mando de fazendeiros, invasores das terras do seu povo. Crimes até o momento impunes Índios: da tragédia final anunciada a uma história reescrita (p.347) O escritor Eduardo Galeano em seu conhecido livro As veias abertas da América Latina publicado em fins de 1970, no Uruguai, e que traduzido no Brasil já ultrapassou mais de 40 edições, escreveu sobre os povos indígenas e a colonização: “Os índios padeceram e padecem – síntese do drama de toda a América Latina – a maldição de sua própria riqueza (...) (p.348) As matanças dos indígenas começaram com Colombo e nunca cessaram” (1987: 58-59). E ao tratar do Brasil, na mesma obra, afirmou o conceituado autor: “Não se salvam, atualmente, nem mesmo os índios que vivem isolados no fundo das selvas. No começo deste século, sobreviviam ainda 230 tribos no Brasil; desde então desepareceram 90, aniquiladas por obra e graça das armas de fogo e micróbios. Violência e doenças, pontas de lança da civilização: o contato com o homem branco continua sendo para os indígenas, o contato com a morte”. (pág. 60). A visão da história da colonização da América, apenas enquanto uma tragédia, por diversos autores que se dedicaram ao assunto e, durante muito tempo, pelas reflexões das Ciências Humanas e Sociais, fundamentaram-se nos relatos dos primeiros cronistas coloniais a exemplo de Bartolomé de Las Casas, que é o autor da célebre e conhecidíssima Brevíssima Relación de la Destruición de las Indias Ocidentales (1552), nos relatos de Gonzalo Oviedo, Juan Sepulveda, Bernadino de Sahagun, dentre outros, que descrevem as violências e atrocidades da colonização espanhola. Essa visão apenas trágica aliada a uma concepção evolucionista, norteou também por muito tempo, os estudos sobre os povos indígenas no Brasil. Estão presentes em As Américas e a civilização (citada por Eduardo Galeano) e em Os índios e a civilização, obras muito conhecidas do antropólogo Darcy Ribeiro, sendo que, nesta última, que(p.349) tem como subtítulo “ A integração das populações indígenas no Brasil moderno”, na parte que tratou das “fronteiras da civilização”, ao analisar a expansão pastoril no Nordeste, o autor concluiu: “Por todos os sertões do Nordeste, ao longo dos caminhos das boiadas, toda a terra já é pacificamente possuída pela sociedade nacional; e os remanescentes tribais que ainda resistem ao avassalamento só têm significado como acontecimentos locais, imponderáveis.” (Ribeiro, 1982:57). (grifamos). Contrariando as previsões funestas, os povos indígenas ao longo dos 500 anos de colonização, não somente elaboraram diferentes estratégias de resistência/sobrevivência, como também alcançaram nas últimas décadas, um considerável crescimento populacional. Crescimento este recentemente noticiado pela imprensa de 3,5% ao ano, maior que a média da população brasileira em 1,6%, segundo estimativa do IBGE. (Jornal Folha de São Paulo, 24/03/01,p.A9). Questionando assim as tradicionais imagens e visões eurocêntricas, colonialistas e evolucionistas, o que exigiu reformulações das teorias explicativas sobre esses povos. Classificados no Nordeste, oficialmente, como remanescentes de índios e, nos lugares onde existiram antigos aldeamentos, conhecidos no senso comum, por caboclos, condição muitas vezes assumida para esconder a identidade étnica diante das inúmeras perseguições nos conflitos das invasões de suas terras, a eles foram dedicados estudos de (p.350) seus hábitos e costumes considerados exóticos, com seus rituais, danças e manifestações folclóricas em vias de extinção, como aparecem em publicações que exaltaram de forma idílica a contribuição indígena nas origens e formação social de municípios do interior. Porém, o caboclo permaneceu índio, questionando as teorias do desaparecimento indígenas e assim, vários povos indígenas “invisíveis” no Nordeste, teceram uma história de resistência étnica afirmada nas primeiras décadas do século XX, no momento conjuntural por eles considerado propício para exigirem o reconhecimento oficial, para mobilizarem-se na reconquista de suas terras e de seus direitos históricos negados. (Silva, 2000: 110-111). Nos últimos 30 anos diversos povos indígenas ressurgiram na Região em um processo de emergência étnica. Esses povos vivenciaram um processo dinâmico de reelaborações culturais e de identidades negociadas, em um contexto político de luta pela terra e direitos sociais, processo esse explicado pela reflexão antropológica como etnogênese (Oliveira, 1999). Recentemente, a imprensa noticiou os casos de ressurgimento dos Pitaguary, no Ceará, dos Karuazu, os Kalancó, os Katoquin e os Koiupanká em Alagoas, dos Tumbalalá, e os Pipipã, em Pernambuco e dos Tupinambá, na Bahia. As diversas e diferentes estratégias de resistência indígena Longe de negar as inquestionáveis violências dos colonizadores europeus, que provocaram a significativa depopulação dos povos nativos, a exemplo do Brasil, onde uma população estimada em 5 milhões em 1500 está hoje reduzida a uma população com 550.438 indivíduos. Essa totalização inclui segundo dados do IBGE/99, cerca de 900 indígenas que são pertencentes a povos não contactados habitantes principalmente (p.351) em algumas localidades da Região Norte. Contabilizam 225 povos indígenas que falam 180 línguas distintas, habitam todas as regiões do país (Prezia e Hoornaert, 2000 ). Assim, a existência/permanência dos povos indígenas é um dado inquestionável. As discussões iniciadas nos anos 80, na área da Antropologia, sobre a dinâmica da colonização, as relações culturais em uma situação de contato, sobre a identidade étnica, a territorialização etc., como também as novas abordagens pelos estudos de História, exigindo repensar a idéia atribuída aos indígenas como “povos derrotados”, passivos, subjugados, que passaram a ser vistos como sujeitos/agentes ativos no processo colonial, num contexto de dominação/imposição cultural. Esses estudos buscaram compreender como os diversos povos em diferentes contextos situacionais, elaboraram diversas estratégias que possibilitaram a sobrevivência nesses cinco séculos de colonização. Nesse sentido, foi ampliada a concepção do próprio conceito de resistência, até então vigente, enquanto apenas confrontos, conflitos bélicos, guerras com fins trágicos e a morte de milhares de indígenas, para uma concepção mais ampla de relações culturais diferenciadas em um contexto de dominação e violências culturais: a resistência cultural do cotidiano, através de gestos, práticas, atitudes que quebraram uma suposta totalidade da dominação colonial. Uma vez questionadas as visões a respeito dos indígenas como “povos vencidos” e a idéia do “etnocídio”, enquanto total destruição física e cultural foram estudadas as diferentes estratégias utilizadas pelos povos nativos em uma permanente resistência ao colonialismo. As simulações, (p.352) as acomodações, os acordos, as alianças. O chamado hibridismo cultural, ou seja, as apropriações simbólicas que as culturas indígenas fizeram da cultura colonial, reformulando-a, adaptando-a, refazendo-a, influenciando-a, reinventando-a, no que é conhecido como religiosidade popular, sincretismo etc., que permeiam os “500 anos”. Autores como, Gruzinski (1995) e Bruit (1995) que estudaram a América espanhola, Vainfas (1997) e Barros (1997) que pesquisaram o Brasil, revelaram que mesmo naqueles contextos de diversas violências explícitas, os povos indígenas simularam–se derrotados e sabotaram a dominação colonial, estabelecendo uma “resistência invisível”, através da persistência de práticas religiosas ancestrais, com simulações de adesão ao cristianismo, práticas estas consideradas como idolatrias pelos missionários, deixando-os bastante irritados ao perceberem os desvios em seus trabalhos catequéticos. Acordos, negociados entre líderes indígenas e colonizadores garantiram a influência e o poder dos primeiros sobre seus grupos. Casos de rebeliões em aldeamentos de índios, já considerados mansos e cristãos, colocavam em questão o trabalho catequético de anos, que mantinha um suposto controle colonial sobre os povos indígenas. Negociações possíveis em um contexto de dominação foram feitas em diferentes situações e momentos, o que permitiu aos povos indígenas manterem um convívio aparentemente pacífico no mundo colonial, resistirem/sobreviverem, como também subverterem a suposta ordem dominante na história dos 500 anos. (Silva, 2000:100-103). (p.353) Nossa Sra. das Montanhas/Nossa Mãe Tamain: o rosto arredondado como o de uma “cabocla” “Nossa Senhora das Montanhas “Oi, arreia, arreia, arreia É uma santa de valor Tamain arreia, arreia (bis) Quem achou ela na mata Deus no céu e índio na Terra (bis) Foi o índio caçador Vamos ver quem pode mais Arreia, arreia, arreia, arreia É Deus no céu e índio na Terra” Oi, arreeia!” Cantos do ritual do Toré dançado pelos Xukuru O povo Xukuru habita a Serra do Ororubá, no Município de Pesqueira, na Região Agreste, a cerca de 215 Km do Recife, a capital do Estado de Pernambuco. Quanto aos números populacionais Xukuru, existem divergências em relação às estimativas mais recentes disponíveis. A Fundação Nacional de Saúde (FUNASA/ESAI) contabilizou, em um levantamento realizado no ano de 1996, cerca de 6.363 indivíduos morando em 40 aldeias espalhadas pela Serra e no Bairro “Xukurus”, localizado na Cidade de Pesqueira. Esses dados foram contestados pelos próprios indígenas, que afirmaram a existência de 1.807 famílias moradoras em 23 aldeias e aproximadamente mais 200 famílias habitando em Bairros de Pesqueira, totalizando 7.842 indivíduos. (Professores Xukuru, 1997: 52). Segundo os indígenas, a diferença entre o número de aldeias se deve ao fato de que, oficialmente, alguns sítios onde moram Xukuru foram classificados aldeias. Os Xukuru que tiveram o aldeamento oficialmente declarado extinto em 1870, atendendo solicitação de invasores das terras indígenas, reivindicam a demarcação efetiva (p.354) (já que oficialmente foi reconhecida) de 27.555 ha, área que encontra-se invadida por mais de 280 fazendeiros e pequenos posseiros , uma situação permanente de conflitos, violência e mortes. Nos últimos 10 anos os Xukuru, bastante organizados e mobilizados, inicialmente sob a liderança do atuante Cacique Xicão, vêm retomando parte de suas terras expulsando tradicionais invasores, o que ocasionou o assassinato do expressivo Cacique, em 1998, e cuja suspeita do mandato recaiu sobre os invasores das terras indígenas. A colonização portuguesa na região onde habitam os Xukuru ocorreu a partir de 1654, quando a Coroa Portuguesa fez doações a senhores de engenho do litoral de grandes sesmarias de terras para criação de gado. Em 1661, atendendo solicitação oficial, os Oratorianos fundam o Aldeamento do Ararobá de Nossa Sra. das Montanhas, onde também possuiríam fazendas de gado, utilizando a mão-de-obra indígena. (Medeiros, 1993). Por determinação da legislação portuguesa (Diretório do Marquês de Pombal, de 1757), o antigo Aldeamento do Ararobá, foi elevado, em 1762, a categoria de Vila de Cimbres. Mesmo diante das proibições, perseguições e violências coloniais, os Xukuru permaneciam com seus cultos tradicionais, realizados às escondidas, após a decretação oficial do fim do Aldeamento no Século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, os Xukuru, como outros povos indígenas no Nordeste, retomaram com mais vigor a mobilização pela posse de suas terras e garantia de seus direitos, pressionando as autoridades do SPI (Serviço de Proteção ao Índio). O primeiro relatório oficial sobre os Xukuru data de 1944, e foi feito pelo sertanista e (p.355)funcionário do SPI, Cícero Cavalcanti (apud, Antunes,1973,40-43). Nesse Relatório, afirmava o sertanista que em razão dos “caboclos mais velhos” reunirem-se para realização dos seus rituais, eram denunciados como catimbozeiros pelos brancos à polícia. Líderes dos cultos indígenas foram intimados a comparecer à Delegacia, e os índios estavam proibidos de praticar “o segredo” do Ouricuri pela polícia. Outros indígenas foram denunciados, tendo as autoridades policiais “os proibido de curatórias”. O sertanista afirmava ainda que “alguns costumes Xukurus ainda vivem em seu coração”. O Toré era dançado quando fazem a Festa de Nossa Senhora das Montanhas, em Cimbres. Em uma publicação do início do século XX, o Toré foi descrito como uma dança “tradicionalmente ainda em voga, nomeadamente, entre os semi-selvagens de Cimbres” (Pereira da Costa, 1976, 754) (Grifamos). Escrevendo sobre as impressões transmitidas por um etnólogo, que no começo da década de 30 esteve em Cimbres e conheceu os Xukuru, uma cronista afirmava: Quanto a religião, tem uma espécie de idolatria, por infiltrações do catolicismo e pretendem o monopólio do culto à santa de sua devoção. Sabem, perfeitamente, que descendem da tribo Xukuru que ocupou aquela região, têm orgulho de sua procedência e julgam-se superiores aos outros habitantes, guardando rancor dos brancos por lhes haverem tomado as terras. (Melo, 1935, 43-44). Essas afirmações, considerando o etnocentrismo dos seus autores, revelam uma resistência dos indígenas, pois mesmo a despeito da extinção oficial do aldeamento, dos (p.356) discursos da “degeneração” e do “desaparecimento”, da espoliação violenta de suas terras, permaneceu a afirmação étnica Xukuru. Seguindo o calendário festivo em Cimbres, dos santos católicos romanos, São João, chamado Caô pelos Xukuru, é festejado em junho. N. Sra. das Montanhas, denominada Mãe Tamain, no início de julho, além de S. Miguel, em setembro. Além de outras práticas religiosas como rezar o Terço, promover novenas, viajar a Juazeiro do Norte/CE para as celebrações que lembram o Pe. Cícero, os Xukuru participam mais intensamente nos festejos dedicados a Caô e a Tamain. O primeiro diferente da imagem tradicional simbolizado por uma criança com um cordeiro, é visto pelos indígenas como um guerreiro. Assim, também é visto S. Miguel. Tamain é a protetora dos Xukuru e de Cimbres, considerado um espaço sagrado de propriedade indígena. Nas festas dedicadas a Caô e Tamain os Xukuru participam ativamente. Na festa para Tamain, a participação, porém, é maior: desde a Procissão da Bandeira, dançando o Toré, devidamente “fardados” com o Tacó (vestimenta de palha tradicional Xukuru), na frente do templo católico em Cimbres, ao transporte do andor. Só os Xukuru têm o direito de carregar o andor e tocar a imagem. Esse “monopólio” sempre foi motivo de questionamentos e conflitos com as autoridades religiosas que dirigem os festejos. Apesar disso, depois da Procissão gritando “Viva Tamain, Pai Tupã e o Cacique Xicão”, os Xukuru entram carregando o andor no templo, onde as lideranças postam-se em pé, próximas ao altar central, enquanto outros indígenas ocupam o corredor principal e as laterais. Ao final (p.357) da missa os não-índios retiram-se, em reconhecimento e respeito aos indígenas, cedendo espaço para os Xukuru que dançam o Toré ao redor dos bancos entoando repetidas vezes seus cantos rituais tradicionais. A apropriação e reinterpretação dos espaços e símbolos religiosos coloniais pelos Xukuru constituem uma afirmação étnica, de fortalecimento nas reinvindações dos direitos indígenas. O que pode ser observado em depoimentos recolhidos para um estudo (Neves, 1999:77; 118) realizado sobre as festas religiosas em Cimbres: “Mãe Tamain é aquela que leva a gente pra luta. Com força de Mãe Tamain, ninguém pára a gente não. Mesmo quando nós era mais perseguido, nossa Mãe sempre protegeu nosso ritual aqui na Vila”. “Tamain nasceu em Cimbres, ela era uma cabocla”. Os Xucuru, além de afirmarem que Cimbres é um espaço sagrado e daí a busca do domínio sobre ele, dizem também que N. Sra. das Montanhas/Tamain pertence a eles. O que aparece nos relatos das muitas versões sobre o “achado” da Santa, encontrada por uma índia criança, “um caboclo velho”, ou ainda por um índio enquanto caçava na mata. Dizem também que foram os índios que fizeram “uma cabana de palha para ela em cima do tronco onde ela foi encontrada”. Também descrevem seus traços físicos do rosto como o de uma “cabocla”. Se por um lado a introdução de um culto mariano fez parte da pedagogia evangelizadora missionária inicial junto aos Xukuru, onde o estímulo às devoções a imagem (p.358) de N. Sra. das Montanhas comunicava bem mais que a pregação com palavras ou textos escritos estranhos à cultura indígena, por outro lado, houve uma aproximação entre os mundos sobrenaturais indígenas e cristão. Pode-se pensar em uma situação análoga para o caso da colonização espanhola no México, onde “o êxito da imagem cristã entre os índios é indissociável, portanto, de uma conjuntura inicial que em muitos aspectos resulta excepcional, pois une uma receptividade imediata e uma habilidade precoce as notáveis capacidades de assimilação, interpretação e criação”. (Gruzinski, 1994:182). A imagem cristã tornou-se um símbolo para o povo Xukuru que em torno dela “reconstruíram nexos sociais e culturais”, o mesmo ocorrendo mais tarde com as devoções a outros santos: São João e São Miguel também introduzidos pelos missionários, demostrando que os indígenas nunca foram apenas “consumidores passivos” da evangelização. (Idem, 1994). Quando os Xukuru apropriaram-se das imagens cristãs, aconteceu uma “captura do sobrenatural cristão” pelos indígenas e uma “cristianização do imaginário indígena”, a semelhança do que aconteceu no México colonial, como analisa Serge Gruzinski (1995). Ocorreram relações em um movimento dinâmico de “circularidade cultural”, onde “temos, por um lado, dicotomia cultural, mas por outro, circularidade, influxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica” (Ginzburg, 1987:21), movimento este bem mais complexo do que a explicação de uma suposta aculturação Xukuru. Os Xukuru apropriaram-se dos símbolos coloniais religiosos, dando-lhes, ainda, um significado também para sua organização e mobilização, expressadas em momentos de (p.359) cultos públicos. Um exemplo disso ocorreu na Festa de N. S. das Montanhas/Tamain em 1998, quando na frente da Procissão os Xukuru levavam uma faixa que dizia: “Chicão com teus familiares e amigos deixaste como recordação um pouco do seu sorriso”, lembrando uma das mais expressivas lideranças na lutas pelos direitos indígenas. Observando as práticas Xukuru é possível comprovar as muitas e diferentes estratégias conscientes, ou não, que os povos indígenas elaboraram frente à colonização. As relações no universo cultural/religioso se constituem um campo sobremaneira onde ocorreu simulações, embates, associações, inversões, etc. que, uma vez pesquisadas, possibilitarão superar visões nefastas sobre os povos indígenas, compreender melhor a história e a dinâmica do processo colonial e os seus atores. Foi essa a tentativa neste breve estudo introdutório. NOTA Em 02/05/01, o Governo Federal homologou as terras Xukuru (o último passo burocrático no reconhecimento oficial de um território indígena). Existiram razões demais para festejar, por ocasião da 1a Assembléia do Povo Xukuru em Memória Viva do Cacique Xicão, que ocorreu de 17 a 19/05, para a qual me senti muito honrado ao receber o convite para contribuir na assessoria. O encontro, que contou com delegações de outros povos indígenas e muitas outras pessoas solidárias com a causa indígena, culminou como anteriormente planejado, com uma caminhada da Serra do Ororubá (p.360) para as ruas de Pesqueira, e foi realizado um ato público pela passagem dos 3 anos do assassinato do Cacique Xicão. Restava ao poder público indenizar, segundo a lei, as benfeitorias dos invasores promovendo assim a saída deles da área indígena. O que vem ocorrendo, com a devolução por parte de pequenos proprietários e fazendeiros das terras aos Xukuru. Porém, aos invasores ainda é facultado o direito a recursos judiciais, contestando o valor das indenizações, como fizeram alguns fazendeiros, cabendo a justiça uma decisão. Todavia, a homologação é um ato irrevogável. A persistência do Cacique Xicão, de Chico Quelé, o empenho, a luta, suas vidas e de tantos outros que lutaram pelo reconhecimento dos direitos Xukuru, os direitos indígenas, não foi em vão. Lamentável o preço tão caro: a própria vida! BIBLIOGRAFIA ANTUNES, C. (1973). Wakona-Kariri-Xucuru. Aspectos sócio-antropológicos dos remanescentes indígenas de Alagoas. Maceió, Universidade Federal de Alagoas. BARROS, P.S. (1997). Confrontos invisíveis: colonialismo e resistência indígena no Ceará. Recife, UFPE, Dissertação (Mestrado em História). BRUIT, H. H. (1995). Bartolomé de Las Casas e a simulação dos vencidos. Campinas, Unicamp, São Paulo, Iluminuras. CCLF – Centro de Cultura Luiz Freire (1997). Memórias do Povo Xukuru. Olinda, dig. (p.361) FIAM/CEHM / Prefeitura de Pesqueira. (1985). Livro da criação da Vila de Cimbres: 1762-1867. Recife, FIAM/CEHM. GALEANO, Eduardo. (1987). As veias abertas da América Latina. 25 ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. GINZBURG, Carlo. (1987). O queijo e os vermes. São Paulo: Cia. das Letras, GRUZINSKI, Serge. (1994). La guerra de las imágenes: de Cristóbal Colón a “Blade Runner” (1492-2019). México, Fondo de Cultura Económica. ________________. 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MEMORIAS XUKURU E FULNI-Ô DA GUERRA DO PARAGUAI - Artigo

(publicado in Ciências Humanas em Revista v.3, nº2, 2005, UFMA, São Luís, p.51-58) MEMORIAS XUKURU E FULNI-Ô DA GUERRA DO PARAGUAI Edson Silva1 A Guerra do Paraguai: abordagens recentes O conflito, que se convencionou chamar a Guerra do Paraguai (1865-1870), vem sendo, nos últimos anos, objeto de vários estudos, que baseados em amplas pesquisas documentais, possibilitaram novas abordagens sobre o confronto armado que sacudiu o Cone Sul no quartel final do século XIX. Nessa perspectiva, foram superados os trabalhos tradicionais que enfatizaram aspectos militares, bem como as biografias de heróis oficiais da Guerra do Paraguai (GP). Foi deixado de lado também o enfoque positivista republicano que acusava o Brasil monárquico pelo genocídio imposto ao Paraguai. Assim como foi abandonado o enfoque marxista de fins da década de 1960, que enfatizava um suposto nacionalismo progressista paraguaio, e apontou o expansionismo do imperialismo britânico como responsável pela Guerra. O conflito passou a ser visto como regional, uma disputa entre os países envolvidos pela hegemonia na região do Prata .2 Com os estudos mais recentes foram evidenciados outros aspectos da Guerra. Através dos novos enfoques, foram discutidos as formas do recrutamento, a participação negra de escravos e libertos, de mulheres, as imagens (fotografias, pinturas e caricaturas) da guerra, etc. Todavia ainda foi pouco estudada a dimensão da participação indígena naquele conflito, bem como as narrativas e as memórias resultante dela. Nos novos estudos sobre a GP as análises sobre o recrutamento são unânimes em apontarem que no início do conflito a perspectiva de sua curta duração, somando-se a imagem construída de uma guerra da civilização moderna contra a “barbárie” paraguaia indígena guarani, que deveria ser derrotada, motivaram o alistamento de muitos para participar no front de combates. Com o prolongamento da Guerra, além de manifestações de protestos em todas as províncias do Brasil, tornou-se difícil o recrutamento de novos soldados, inclusive com a resistência da Guarda Nacional. Mesmo tendo a libertação de escravos como uma primeira solução para suprir as necessidades de combatentes, com a continuidade do conflito, o Governo Imperial através de decreto criou e incentivou os corpos de Voluntários da Pátria. Ainda assim, em uma fase crucial da Guerra, quando depois de seguidas derrotas os aliados partiam para batalhas ofensivas decisivas, os entusiasmos patrióticos minguaram e os alistamentos diminuíram. 3 Nesse momento foi usado o velho e conhecido método do recrutamento forçado, que atingiu os membros do partido opositor ao que estava no poder em cada província, os contrários a ordem política e social vigente, os considerados desordeiros, perigosos, os presos e condenados por crimes, e principalmente a população pobre, os habitantes das cidades do interior, das zonas rurais, a exemplo dos índios no Nordeste. Para fugir das perseguições das forças legais, os considerados como potenciais “soldados-voluntários” elaboraram diversas estratégias contra o recrutamento forçado. A análise de fontes documentais bem como de relatos de memórias indígenas sobre a GP, a respeito do recrutamento, da participação e o retorno dos sobreviventes do conflito, nos possibilita evidenciar os significados das elaborações dessas narrativas para a história dos povos indígenas no Nordeste. Tendo presente que, o uso de fontes das fontes orais não apenas permite incorporar indivíduos ou coletividades ate agora marginalizados ou pouco representados nos documentos arquivisticos mas também facilita o estudo de atos e situações que a racionalidade de um momento histórico concreto impede que apareçam nos documentos escritos. Assim, portanto, as fontes orais possibilitam incorporar não apenas indivíduos a construção do discurso do historiador, mas nos permite conhecer e compreender situações insuficientemente estudadas ate agora, (Alcazar i Garrido, 1992/1993, p. 36), Faremos uma reflexão a partir de documentos escritos e fontes orais sobre as memórias indígenas Fulni-ô e Xukuru do Ororubá a respeito da GP. O recrutamento indígena Na documentação da Diretoria dos Índios em Pernambuco encontramos diversos ofícios que se referem ao processo de recrutamento de índios para a GP. É clara a truculência empregada pelos Diretores das Aldeias no alistamento forçados dos índios como Voluntários da Pátria. As justificativas são sempre a manutenções da ordem e da paz nas aldeias. A exemplo da punição para acusados ou envolvidos em assassinatos, como ocorreu em 1865 quando o Diretor Parcial da Aldeia de Barreiros que informava ao Presidente da Província estar enviando 10 e não 15 recrutas e que diante da recusa de índios como “voluntários”, afirmava “Se V. Exª. o determinar, mandarei recrutá-los”.4 Encontramos acompanhando um ofício datado de 1865, uma relação com nomes de 82 índios “Voluntários da Pátria” da Aldeia de Cimbres, onde habitam atualmente os Xukuru do Ororubá, em Pernambuco. Informa ainda o documento que os alistados estavam deixando seus soldos em consignação para suas famílias.5 Mas o recrutamento que aparece como uma ação tranqüila, é desmascarada na leitura de um ofício do ano seguinte, enviado ao Presidente da Província pelo do Diretor Geral dos Índios, com a queixa de um índio de uma numerosa família, pedindo dispensa de dois filhos seus que “forão forçados a se alistar como Voluntários da Pátria”.6 Os aldeados em Cimbres por diversos meios procuraram se livrar do recrutamento obrigatório. A exemplo do índio José Carneiro da Cunha, que em 1865 solicitou e conseguiu de 6 moradores de Olho d’Água, atestados reconhecidos em cartório, confirmando ser o seu filho Laurentino José Carneiro portador de gôta, doença que o impedia de ser recrutado . Posteriormente, Laurentino através de um Requerimento, pediu e recebeu do Tenente Joaquim Almeida de Carvalho, Diretor do Aldeamento de Cimbres, um “Atestado” também reconhecido em cartório, confirmando a condição de índio do solicitante, informando ainda o documento que os índios não eram “sujeitos a recrutamento.”7 O índio Laurentino “a fim de pedir dispensa do serviço para o qual foi designado”, tendo sido “detido na Vila de São Bento”, dirige um requerimento outra vez ao Diretor de Cimbres, justificando seu pedido “por ser índio e não ser qualificado”. Atendendo ao pedido, o Diretor por meio de um “Atestado” confirmou a residência de Laurentino na Aldeia de Cimbres, afirmando ainda que ele não teria condições para compor as tropas da Província a serem enviadas a GP.8 Possivelmente a documentação do índio Laurentino foi ignorada pelas autoridades, e por essa a razão o seu pai, afirmando ser um agricultor sexagenário com dificuldades de trabalhar, enviou um requerimento ao Presidente da Província, pedindo a liberdade do seu filho que era “o responsável pelo sustento da família”, pois com o seu recrutamento ficaria difícil para seus familiares aldeados em Cimbres sobreviver sem a sua ajuda.9 O desamparo em que se encontrava em 1866 as famílias dos índios de Alagoas enviados para a GP, era motivo de recusa dos novos voluntários. Informava o Diretor Geral dos Índios que escreveu aos diretores das aldeias com uma “ordem de recrutamento dos índios que estiverem ao seu alcance”10. Em outra correspondência ao Presidente da Província, insistia o Diretor Geral na necessidade de pagar os vencimentos às famílias, pois sem a vantagem pecuniária 40 índios da Aldeia de Jacuípe que atenderam a convocação para o recrutamento, “esfriarão todos”.11 As fugas para se esconder nas matas ou desaparecimento do seu local de moradia, as deserções de tropas já formadas, as declarações de doenças, os casamentos até com mulheres mais velhas, homens que se vestiam de mulher, os ataques de grupos armados às forças legais que traziam recrutados a força para a capital, ou ataques a cadeias do interior libertando os presos a serem enviados como soldados para a guerra, rebeliões, etc. foram as muitas formas de resistências ao recrutamento que ameaçaram a ordem social vigente.12 Entre os índios Xukuru do Ororubá da cidade de Pesqueira, os Fulni-ô (anteriormente conhecidos como Carnijós) de Águas Belas ambos no interior de Pernambuco, os Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios e os atuais Wassu de Jacuípe, em Alagoas, encontramos muitos relatos orais, memórias sobre a GP. Selecionamos aqui para a nossa discussão, apenas alguns trechos desses relatos. Memórias Fulni-ô sobre a GP O índio fulni-ô Elpídio de Matos, com 88 anos relatou o que ouviu dos seus antepassados sobre a GP, “A Guerra do Paraguai eu ouvia dizer que foi uma guerra que era para se acabar mesmo. Foi 50 e tantos índios... tudo foi morto lá. Meu avô foi para a GP. A história era contada pelos que voltaram. Meu avô não voltou, morreu”. Sobre o recrutamento, Elpídio em sua narrativa confirmou o que aparece na documentação escrita: “Os índios daqui, eles foram a pulso!. Eles foram a pulso para essa tal da GP. Quem não queria ir, foi um puxão, eles foram na marra. Pegaram a pulso. E foi uma poção de gente dessa cidade também, foi pobre e rico”. Elpídio relatou outras lembranças do recrutamento forçado e as resistências a ele, Disse que tinha deles menino com 12 anos que já era uma rapaizote, vestia roupa de mulher para não ir. Porque não podiam levar mulher para a guerra! Então não era só índio, era qualquer pessoa! Disse que vestia roupa de mulher para ficar como mulher para não ir para a Guerra, para a policia não pegar. Foi índios de outras aldeias também. Quem foi vivo nessa época foi. Aquilo ali foi para muitos pobres e só não ia o rico! Mas os pobres ia na marra! Quem, correu se escondeu no mato! Quando eles pegavam era só índios. Pegava e amarrava, foram amarrados encangados. Foi 20 e tantos índios daqui, encangados13 Memórias Xukuru: a bravura de Maria Coragem e dos “30 d0 0rorubá” Sabe-se que diversas mulheres, prostitutas, esposas e seus filhos menores acompanhavam seus maridos-soldados na GP. Mulheres que seguiam as tropas e “não tinham medo de coisa alguma”, e nas frentes de batalhas ora socorriam os feridos improvisando ataduras com suas próprias vestes, ora combatiam ao lado dos homens.14 O povo Xukuru do Ororubá dentre os vários relatos acerca da Guerra, falam sobre “Maria Coragem”, uma índia que se destacou nos campos de batalha, “...foi Coragem, uma mulher chamada Coragem, porque o nome dela não era coragem, chamaram depois que ela foi para a Guerra, pela coragem dela.”15 Nas narrativas dos Xukuru são lembrados enfaticamente “os 30 do Ororubá”, combatentes que se destacaram em uma das batalhas na GP, Eu ouvi falar assim, é uma história nossa que nós temos dizendo que os Xukuru foram para a GP brigarem. Foram 30, morreram 12, voltaram 18. Então eu ouvi falar, então foi os índios do Brejinho, não lembro nem aonde mora, nem o nome deles. Eles são da família dos Nascimento, lá na Aldeia Brejinho. E foi mais uns outros de outras aldeias Xukuru, e foi uma índia chamada Maria Coragem também. O mesmo narrador fala sobre os chamados bravos do Ororubá, E lá eles brigaram na Guerra... aí levaram a bandeira... e pediram para eles irem buscar. Então, eles foram, eles já tinham passado... e eles chegaram na beira do rio, e eles já tinham atravessado o rio, eles entraram no mato, cortaram madeira, cortaram cipó, fizeram um barco, foram lá, cortaram tudo de facão e trouxeram a bandeira para a Princesa Isabel.16 A respeito do relatado acima, um pesquisador escreveu que o fato ocorreu durante a Batalha de Tuiuti, um dos maiores embates da GP, quando o inimigo arrebatou a bandeira do '30 de Voluntários’, batalhão integrado pelos nossos índios xucurus. O Comandante, Ten. Cel. Apolônio Peres Cavalcanti Jácome da Gama, em assomo de desapontamento, bradou para os seus soldados (os nossos índios) que retomassem a bandeira e pouco depois a companhia de guerra que partira no cumprimento da ordem, regressava reduzida a 10 ou 12 homens trazendo o nosso pavilhão a despeito de quase transformado em farrapos.17 Os Xukuru relatam também que os seus antepassados voltaram com condecorações da GP, “... o Irmão da Hora trouxe um terno, de reis. Digo, porque o terno eu vi. De coroa, galão e todo, porque ganhou esse prêmio Irmão da Hora, Antonio Molecão e Antonio Tavarinho”.18 Em seus relatos, os Xukuru falam ainda de quepes, medalhas, espadas, “diplomas da Guerra”, roupas e outros adereços militares, além dos “títulos de terra”, trazidos por seus antepassados que retornaram da GP. Autores destacam o “heroísmo” do Cabo Zeferino da Rocha, morador do “Sítio Goiabeira no alto da Serra” [do Ororubá], veterano da GP, membro do “Trinta de Voluntários”, composto de índios xukurus, “todos condecorados depois com medalhas de Guerra e Bravura”.19 A “nossa terra a custa do nosso sangue”. “Nós vencemos a guerra!” Quais os significados que os atuais indígenas no Nordeste dão à participação de seus antepassados na GP? Sabe-se que finda a Guerra o Governo Imperial, como recompensa, destinou além de honrarias militares, lotes de terras aos ex-combatentes. Quais leituras sobre as recompensas que seus antepassados receberam por participarem na Guerra, fazem os índios que desde o último quartel do século XIX enfrentam conflitos com tradicionais latifundiários invasores das terras indígenas, muitos deles descendentes de vereadores encastelados nas câmaras municipais que solicitavam insistentemente aos governos provinciais e ao Governo Imperial as terras dos antigos aldeamentos? Os trechos de alguns depoimentos nos dão uma idéia dessas leituras e seus significados. O fulni-ô Elpídio afirmava: Aqui foi dado com o Rei, foi o sangue que os nossos troncos derramaram numa guerra que o Sr. tem visto falar, GP. Nisso aí morreu 20 e tantos índios já nessa Guerra. Então o Rei queria dar uma quantidade de dinheiro, muito, pelo sangue que derramaram. Aí dizem que a Princesa Isabel que era a mulher senhora dele, desse Rei, disse prá ele ‘Não! Por dinheiro não, que o dinheiro se acaba. Agora vamos um dá um terreno prá eles’... ... ... disse que está escrevido com tinta de ouro, essa assinatura que a Princesa Isabel assinou. E de lá prá cá tomemos orgulho e graças a Deus a gente vive e eles não tomam mais não! (grifamos). Entre os Xukuru encontramos relatos semelhantes, Chamavam o número Trinta dos Voluntários. Chama os Trinta dos Voluntários porque foram pro Paraguai, lutaram na guerra lá venceram... mas quando veio de volta, passaram no RJ, o rei e a rainha não tinham com que agradecer a eles e disse: ‘vocês faça sua divisão de terra, é patrimônio que eu vou assinar pra vocês’ (grifamos).20 Ou ainda de forma mais explícita na fala do Vice-Cacique Xukuru, Olhe, a dádiva que da Guerra foi oferecido dinheiro e ouro. Só que para os índios, dinheiro e ouro não eram interessantes, interessante era a terra. Aí eles disseram que ao invés de ouro eles queriam uma coisa que nunca se acabasse, que era a terra que estava na mão de algumas pessoas que não deixavam eles trabalhar. Então, eles queriam a terra para eles viverem, os filhos deles viverem e os filhos dos filhos deles. Isso aí foi o pagamento que eles receberam, que eles pediram.21 (grifamos). Questionado sobre qual foi a importância da participação dos seus antepassados na GP, o Pajé Sr. Zequinha, uma das figuras centrais no processo de reconhecimento dos marcos para o processo de demarcação do território Xukuru nos anos 1990, afirmou, Foi importante porque na época aqui existia uns coronéis, uns capitães, uns tenentes. Só bastava, era o pessoal que podia comprava aquelas patentes de tenente, de capitão e aí massacrando os índios. Depois que eles vieram, melhorou. Trouxeram os títulos, aí eles não puderam... eles tomavam a terra, eles tomavam, “aqui é meu, é meu e pronto, acabou-se Compreender o significado das narrativas sobre a Guerra do Paraguai para os Xukuru, é compreender a “história de experiências”. Um debruçar sobre essas narrativas, possibilita entender como “pessoas ou grupos efetuaram e elaboraram experiências”. (Alberti, 2004, p.25). Essas experiências foram/são marcantes porque foram intensamente vividas. As narrativas do povo Xukuru nos ajudam ainda “entender como pessoas e grupos experimentaram o passado e torna possível questionar interpretações generalizantes de determinados acontecimentos e conjunturas”. (Idem, 26). O pesquisador francês Michael Pollak, ao discutir as relações entre memória e identidade social, afirmou ser perfeitamente possível que “por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase herdada” (Pollak, 1992, p.2). Assim, a partir dos relatos acima, é possível entender das leituras que indígenas fazem sobre a participação de seus antepassados na GP, dentre outros prováveis significados, que eles lhes deixaram como herança a vitória da Guerra, transmudada também em uma certeza da vitória da guerra em muitas batalhas por suas terras, pela reivindicação e reconhecimento de seus direitos históricos, que lhes garante o futuro. Apoiados na memória e a história que compartilham sobre o passado, da releitura que fazem de acontecimentos que escolheram como importantes, os Xukuru (re)constroem sua identidade para afirmarem seus direitos enquanto um povo indígena.

ÍNDIOS, O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA*

ÍNDIOS, O RECONHECIMENTO DA DIFERENÇA* Edson Silva** RESUMO Em novos cenários políticos e com outros atores, os povos indígenas no Brasil conquistaram e ocuparam seus espaços, reivindicando o reconhecimento e o respeito as suas expressões étnicas e culturais, bem como das condições para vivenciá-las. O reconhecimento da pluralidade além de provocar um repensar do país, vem exigindo políticas públicas que dê conta dessa realidade. Daí a necessidade de se debruçar sobre a História do Brasil, da realização de pesquisas para uma melhor compreensão no presente da diversidade sociocultural em um país com dimensões continentais, em suas peculiaridades regionais e locais. ABSTRACT In new scenarios and other political actors, indigenous peoples in Brazil conquered and occupied its space, demanding recognition and respect their cultural and ethnic terms and conditions to experience them. The recognition of plurality as well as cause a rethink of the country, has been demanding public policies that take account of that reality. Hence the need to focus on the history of Brazil, the completion of the search for a better understanding of this diversity of social and cultural in a country with continental dimensions, in their regional and local peculiarities. Onde estão os índios? A dúvida ou a resposta negativa a essa pergunta ainda é ouvida da imensa maioria da população, e até mesmo de pessoas mais esclarecidas. O pouco conhecimento generalizado sobre os povos indígenas, está associado basicamente à imagem do índio que é tradicionalmente veiculada pela mídia: um índio genérico, com um biótipo formado por características correspondentes aos indivíduos de povos habitantes na Região Amazônica e no Xingu, com cabelos lisos, pinturas corporais e abundantes adereços de penas, nus, moradores das florestas, de culturas exóticas, etc. Ou também imortalizados pela literatura romântica produzida no Século XIX, como nos livros de José de Alencar, onde são apresentados índios belos e ingênuos, ou valentes guerreiros e ameaçadores canibais, ou seja, “bárbaros, bons selvagens e heróis” (Silva, 1994). Até recentemente nos estudos da História do Brasil, o lugar do índio era na “formação” da chamada nacionalidade brasileira. Depois de desaparecer nos textos sobre o “Descobrimento do Brasil” nos livros didáticos, o índio voltaria a ser lembrado nos estudos da Literatura da época do Romantismo no Brasil. O “índio” até bem pouco tempo era único, “Tupi-Guarani” em todas as “tribos”, morava em “ocas” e “tabas”, era antropófago, preguiçoso, em vias de extinção e existente apenas no Xingu ou em remotas regiões do Norte do país. São essas imagens expressadas comumente pelas pessoas sobre os índios. A desinformação, os equívocos e os pré-conceitos sobre os povos indígenas, resultam das idéias eurocêntricas de “civilização”, do etnocentrismo cultural e da concepção evolucionista da História, onde, no presente, os indígenas são classificados como “primitivos” possuidores de expressões culturais exóticas ou folclóricas ainda preservadas, mas que determinadas a serem engolidas pelo “progresso” da nossa sociedade capitalista. Novas abordagens Contrariando as previsões pessimistas, os povos indígenas no Brasil ao longo dos mais de cinco séculos de colonização, não somente elaboraram diferentes estratégias de resistência/sobrevivência, como também alcançaram nas últimas décadas, um considerável crescimento populacional. Os dados do IBGE/2005 apontam que em 10 anos, na década de 1990, a população indígena cresceu 150%! Passando de 234.000 mil para cerca de 734.000 indivíduos, que habitam todas as regiões do Brasil. As condições mais favoráveis no cenário político brasileiro para as sociais, diversos grupos considerados aculturados ou tidos até então como desaparecidos expressaram suas identidades e conquistaram o reconhecimento como povos indígenas. Questionando assim as tradicionais imagens e visões eurocêntricas, colonialistas e evolucionistas, o que exigiu reformulações das teorias explicativas sobre esses povos. Sem negar as inquestionáveis violências coloniais, que provocaram significativa depopulação dos povos indígenas, as discussões iniciadas nos anos 1980, na área da Antropologia, sobre as dinâmicas da colonização, as relações culturais em uma situação de contato, como também as reflexões com novas categorias de análise como identidade, emergência étnica, territorialização etc., incorporadas pelos estudos da História, exigiram repensar a idéia atribuída aos indígenas como povos derrotados, passivos, subjugados. Nas novas abordagens, esses grupos passaram a ser vistos como sujeitos/agentes ativos no processo colonial, em diversos contextos e situações de dominação/imposição cultural. Passaram a ser estudadas as diferentes estratégias utilizadas pelos indígenas por meio das simulações, acomodações, alianças, as apropriações que as culturas indígenas fizeram da cultura colonial, reformulando-a, adaptando-a, refazendo-a, influenciando-a, reinventando-a em diferentes formas, no que foi muitas vezes chamado de festas dos caboclos, religiosidade popular, sincretismo, etc., registrados na História do Brasil. Nos últimos vinte anos vêm sendo realizadas diversas pesquisas sobre os chamados índios misturados em Pernambuco, no Nordeste. Esses grupos, que se mobilizam desde as primeiras décadas do século XX, colocando em questão crenças e afirmações sobre o desaparecimento indígena na Região após extinção dos aldeamentos, a partir de meados do século XIX, conquistaram considerável visibilidade política em anos recentes. Constituindo-se, portanto, em um tema a ser discutido na área de História, malgrado ainda preconceitos e o quase desconhecimento, expresso pelos escassos estudos sobre o assunto, nessa área do conhecimento. Ao contrário do considerável volume de estudos, alguns deles publicados, realizados nos últimos anos, na área da Antropologia, sobre os povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, é facilmente constatável que pesquisas tendo os índios como objetos de reflexões na área de História são ainda em número muito reduzido. Os estudos, em uma perspectiva especificamente histórica, se limitam em sua maioria ao período colonial e alguns ao século XIX. Como foi afirmado anteriormente, a crença, expressa por intelectuais regionais de que a extinção dos aldeamentos, pelo Governo Imperial provocou o desaparecimento das populações indígenas, que foram misturadas e incorporadas aos contingentes de moradores vizinhos, originando o caboclo, no máximo um remanescente, influenciou os estudos posteriores sobre a História no Nordeste. Os então chamados caboclos ou remanescentes de índios no Nordeste foram vistos em uma perspectiva de análise das perdas culturais. E, por essa razão, durante muito tempo esquecidos, até mesmo pelas abordagens antropológicas, pois se tratava de populações marginais, espoliadas, pensadas como totalmente aculturadas, quando situadas em uma escala evolucionista, comparadas com os grupos indígenas do Norte do Brasil, portadores de uma legítima e suposta pureza cultural originária. Foram, portanto, desprezados os processos históricos vivenciados por essas populações. Processos que precisam ser conhecidos, para se compreender as especificidades das situações nas quais os grupos afirmam uma identidade indígena, exigindo o reconhecimento oficial e reivindicando seus direitos, principalmente os relativos às terras invadidas por terceiros. Assim, em novas abordagens, pensar os “índios misturados” no Nordeste é antes de tudo, conhecer os processos históricos e os fluxos culturais, expressos nas relações com diferentes atores sociais nas situações de cada grupo indígena. A cultura não é mais vista na perspectiva das perdas, mas, sim, como expressão das relações sócio-históricas de diferentes atores interagindo, local e globalmente, desde as disputas pelas terras às várias influências políticas, no âmbito público ou mais próximo, nas articulações, alianças e nas organizações sociais. Uma análise dos fatos e acontecimentos históricos deve então levar em conta as diferentes temporalidades e leituras que deles foram realizadas, a partir de interesses explícitos ou não, quando expressos publicamente quase nem sempre pelos índios ou a eles favoráveis. Contabilizados em 12 grupos nas pesquisas realizadas nos anos 1950 (RIBEIRO, 1982, p.462), no início da década de 1980, totalizavam 20 grupos, excetuando o Maranhão onde os povos indígenas são classificados em outra área cultural, (CEDI, 1983:61; 69); vinte anos depois foram relacionados em 41 povos, habitantes entre o Ceará e a Bahia (CIMI, 2001:164). O (re)surgimento dos povos indígenas no Nordeste constitui um fenômeno que questiona as explicações sobre o fim dos índios na Região. As abordagens recentes são a partir dos processos de territorialização, em que indivíduos constroem uma identidade com base na reorganização de afinidades culturais e vínculos afetivos e históricos, que “serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em contexto histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização sociocultural de amplas proporções” (OLIVEIRA, 2004, p.24). Os povos indígenas em Pernambuco, no Nordeste contemporâneo vivenciaram dois processos de territorialização em situações muito diversas. Na primeira, com as missões religiosas, desde o século XVII até o início do século XVIII, quando contingentes de diferentes grupos nativos foram aldeados e catequizados, de que resultaram os atuais etnônimos dos povos indígenas no Nordeste. Nos aldeamentos, como parte da política assimilacionista e homogeneizadora, ocorreu uma primeira mistura. Para atender os interesses expansionistas coloniais, foi incorporada a mão-de-obra indígena e posteriormente incentivados legalmente os casamentos mistos e o estabelecimento de portugueses em terras dos aldeamentos, provocando uma segunda mistura. As missões foram elevadas à categoria de vilas de índios. Com a Lei de Terras de 1850, que determinou o registro oficial de todas as propriedades rurais, foram legitimadas as invasões em terras de antigos aldeamentos, declarados extintos em fins do século XIX. Suas terras, quando não passaram para as mãos de terceiros, foram incorporadas aos patrimônios das câmaras municipais. No ato da medição e demarcação, a umas poucas famílias indígenas foram destinados pequenos lotes, outras famílias se dispersaram, ocorrendo uma terceira mistura, relembrada nos relatos das memórias orais indígenas. Em um segundo momento, um processo de territorialização se iniciou a partir dos anos 1920, quando um posto do SPI foi instalado entre os Fulni-ô, em Águas Belas, depois da mediação de Pe. Alfredo Dâmaso junto às autoridades federais, no Rio de Janeiro. A partir do reconhecimento oficial desse grupo indígena no Nordeste, foi provocada uma articulação e mobilização dos índios, para a instalação, ao longo das décadas seguintes, de postos do SPI entre outros grupos indígenas, sendo o último instalado em 1954, entre os Xukuru, na Serra do Ororubá (Pesqueira/PE). A instalação dos postos criou vínculos de uma tutela paternalista, chegando a estabelecer os critérios que determinavam a identidade indígena, bem como os papéis do cacique, pajé e conselheiro da organização política. (OLIVEIRA, 2004, p.25-27). Os povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste, portanto, vivenciaram esse processo de territorialização, mas que não deve ser entendido como homogeneizador e que tinha ocorrido com a passividade indígena, pois “Cada grupo étnico repensa a ‘mistura’ e afirma-se como uma coletividade precisamente quando dela se apropria segundo os interesses e crenças priorizados” (OLIVEIRA, 2004, p.28). Os atuais estudos sobre os povos indígenas têm revelado a grande diversidade e pluralidade das sociedades nativas encontradas pelos colonizadores. Tendo sido superado o etnocentrismo que condicionava as informações e referências anteriores, as pesquisas mais recentes vêm descobrindo a complexidade e a especificidade dos povos indígenas, seus projetos políticos, as relações decorrentes com a Colonização, as estratégias da resistência indígena, as relações de negociações e conflitos ao longo da história. A Colonização deixou de ser vista como um movimento único, linear, de puro e simples extermínio dos povos considerados passivos, submissos, impotentes. As pesquisas dos últimos anos apontam um complexo jogo de relações, embates, negociações e conflitos, desde a chegada dos primeiros europeus no século XVI, onde se povos foram exterminados, outros elaboraram diferentes estratégias de permanências até os dias de hoje. No século XIX, nas regiões mais antigas da colonização portuguesa a exemplo do Nordeste, agravam-se os conflitos entre as câmaras municipais, onde se encastelavam os vereadores latifundiários e fazendeiros contra os indígenas. O Estado brasileiro favoreceu esses grandes proprietários, chefes políticos locais, que passaram a negar a presença indígena em terras dos antigos aldeamentos, com argumentos da ausência da pureza racial, afirmando que os índios estavam “confundidos com a massa da população” (Silva, 1996), solicitando a extinção dos aldeamentos como formas de resolver os tradicionais conflitos com as invasões dos territórios indígenas. Assumindo o discurso dos grandes proprietários, entre 1860 – 1880, o Governo Imperial decretou oficialmente a extinção dos aldeamentos em Pernambuco e várias regiões do país. Pela legislação da época, as terras dos aldeamentos deveriam ser medidas, demarcadas e loteadas em tamanhos diferentes, destinados em parte às famílias indígenas existentes em cada local. Nesse processo, além de serem reconhecidas às posses em domínio dos grandes proprietários invasores, a lei previa ainda a remoção de famílias indígenas que ficassem fora da partilha dos lotes, para outras aldeias. No caso de Pernambuco, as semelhanças de outros lugares, na documentação da época encontram-se diversos registros de indígenas reclamando que não receberam seus lotes a que tinham direito, ou que a medição favorecia o latifundiário invasor das terras dos aldeamentos. Denúncias de violências, pressões e espancamentos contra os índios, se multiplicaram em documentos da época. Muitas famílias se dispersaram. Sem terras, fugindo às perseguições, vagavam nas estradas ou eram empregadas como trabalhadoras nas fazendas e engenhos. Outras se deslocaram para locais de difícil acesso, onde sobreviveram e mantiveram vivas a consciência étnica e suas tradições. Oficialmente, eram tidos como “caboclos”, ou “remanescentes” de indígenas que tinham “desaparecidos”, como se referiam os livros e foi incorporado pelo senso comum. A eles foram dedicados estudos de seus hábitos e costumes considerados exóticos, suas danças e manifestações folclóricas em vias de extinção, como também apareceram em publicações, crônicas de memorialistas, que exaltaram de forma idílica a contribuição indígena nas origens e formação social de municípios do interior. Os povos indígenas em Pernambuco, no Nordeste, que durante muito tempo foram oficialmente chamados de “remanescentes” e conhecidos pelo senso comum como “caboclos”, através de confrontos, acordos, alianças estratégicas, simulações e reelaborações culturais, desenvolveram diferentes estratégias de resistência frente às diversas formas de violências, às invasões de seus territórios, ao desrespeito de seus direitos, à negação de suas identidades e às imposições culturais colonial. Questionando assim tradicionais explicações históricas, que defendem o destino trágico com o desaparecimento ou extermínio desses povos nos primeiros anos da colonização portuguesa, com sua mobilização os indígenas no Nordeste superam uma visão sobre eles como vítimas da colonização e afirmam seus lugares como participantes e sujeitos que (re) escrevem a História da Região e do Brasil. No início do século XX, esses povos que oficialmente eram considerados extintos, iniciaram uma mobilização pelo reconhecimento étnico oficial e garantia de terras para viverem diante das constantes perseguições dos latifundiários. Os Fulni-ô com a instalação em Águas Belas de um Posto do Serviço de Proteção aos Índios/SPI em 1924, foi o primeiro grupo indígena a conquistar o reconhecimento oficial no século XX em Pernambuco. Com suas mobilizações entre os anos de 1920 – 1950, os Pankararu (Tacaratu), os Atikum (Floresta), os Xukuru (Pesqueira), também tiveram instalados postos do SPI, em seus tradicionais locais de moradias. Em um estudo sobre as populações indígenas no Brasil cuja primeira edição é datada de 1968, o antropólogo Darcy Ribeiro localizou 13 povos habitantes na “Área Cultural Indígena Nordeste” (Ribeiro, 1982, p.461). No início da década de 1980, em uma publicação especializada, (excetuando o Maranhão, onde os povos indígenas são classificados em outra área cultural), foram citados 20 povos indígenas no Nordeste (CEDI, 1983, p.61; 69). Vinte anos depois, foram contabilizados 41 povos habitantes entre o Ceará e a Bahia. (CIMI, 2001, p.164). Com o “milagre brasileiro” na década de 1970 e o avanço dos projetos agro-industriais, as pressões sobre as terras indígenas aumentaram, tanto as dos grupos reconhecidos oficialmente como as dos grupos ainda não reconhecidos. Os povos indígenas em pressionaram a FUNAI para obterem a garantia de seus direitos históricos. A partir da década de 1980, e principalmente depois da participação indígena nas mobilizações para a elaboração da Constituição Federal aprovada em 1988, onde se garantiu pela primeira vez na História do Brasil que o Estado brasileiro reconhecesse os povos indígenas com seus costumes, tradições e o direito a demarcação de suas terras, ocorreu o ressurgimento de vários povos indígenas em Pernambuco e no Nordeste. De acordo ainda com as estimativas oficiais mais recentes, em Pernambuco foi contabilizada uma população indígena com cerca de 38.000 indivíduos (Funasa/Siasi, 2006), formada pelos povos Fulni-ô (Águas Belas), Xukuru do Ororubá (Pesqueira e Poção), Kapinawá (Ibimirim, Tupanatinga, Buíque), Kambiwá (Ibimirim), Pipipã (Floresta), Pankará (Carnaubeira da Penha), Atikum (Carnaubeira da Penha e Floresta), Tuxá (Inajá), Pankararu (Tacaratu, Petrolândia e Jatobá), Truká (Cabrobó) e os Pankauiká (Jatobá), estando esse último povo reivindicando o reconhecimento oficial. Como foi visto os atuais povos indígenas no Nordeste e em Pernambuco, são resultados de deslocamentos de grupos nativos que foram concentrados em missões religiosas, e que devem ser compreendidos no quadro amplo das relações do mundo da Colonização portuguesa. Os aldeamentos, todavia, não representaram o fim dos grupos indígenas, mas novas possibilidades de reelaborações da identidade étnica e de suas expressões culturais. São povos que, portanto, vivenciaram processos dinâmicos de reelaborações das suas identidades étnicas, de suas expressões culturais, em contextos de lutas pela terra, pela conquista e garantia de seus direitos sociais, a exemplos de uma educação e saúde diferenciadas. Esse fenômeno de “emergência étnica” que vem acontecendo nas áreas mais antigas da colonização a exemplo do Nordeste, foi chamado pela atual reflexão antropológica de etnogênese. Ou seja, o processo de emergência histórica de um povo que se auto define em relação a uma herança sociocultural, a partir da reelaboração de símbolos e reinvenção de tradições culturais, muitas das quais apropriadas no processo da colonização e relidas pelo horizonte indígena. Em Pernambuco existem diversos acervos compostos por documentação primária e secundária, publicações, impressos, imagens em vídeos, fotografias, etc., etc., como também artefatos da cultural material e imaterial sobre os povos indígenas no Estado, disponíveis em instituições oficiais, civis e privadas, mas de caráter público. Na UFPE encontram-se diversos estudos (monografias, dissertações e teses), resultados de pesquisas em sua maioria nas áreas de Antropologia e História, que trataram sobre os povos indígenas em Pernambuco. Afora o acervo de organizações não-governamentais como o Cimi-NE e o CCLF, ou de instituições públicas como a Funai e Funasa, que atuam diretamente junto aos índios, em diversos órgãos oficiais estão disponível para consultas grande quantidade de documentos a exemplo do Arquivo Público Estadual (Apeje). Em uma listagem preliminar constatou-se a existência de informações nas seguintes instituições: Fundação Nacional do Índio/Funai; Centro de Cultura Luiz Freire/CCLF; Conselho Indigenista Missionário-Regional Nordeste/Cimi-NE; Fundação Nacional de Saúde/Funasa; Universidade Federal de Pernambuco/UFPE; Fundação Joaquim Nabuco/FUNDAJ; Biblioteca Pública Estadual; Museu do Estado de Pernambuco/Mepe; Condepe; Instituto de Terras de Pernambuco/Iterpe; Fundo de Terras do Estado de Pernambuco/Funtepe; Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano/Apeje; Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco/IAHGP. A especificidade e diversidade dos acervos exigem um levantamento detalhado para o conhecimento, classificação e compreensão das formas de acesso a essas informações. Considerações finais: o lugar do índio, ou questionando a idéia da mestiçagem como identidade nacional O reconhecimento da pluralidade étnica no Brasil contemporâneo é um debate muito recente. Remonta ao período pós-Abertura política e acentuou-se em fins da década de 1990. A idéia da mestiçagem como base de formação de uma identidade nacional homogênea, ganhou corpo ainda no final do Século XIX, foi exaltada pelo Modernismo nos anos 1920 e consolidou-se com as grandes sínteses explicativas do Brasil na década de 1930, tendo como expressão máxima à obra Casa grande & senzala de Gilberto Freyre. A Ditadura Militar que com seus arroubos nacionalistas instalou-se no Brasil em 1964, interessou também sobremaneira a exaltação de um país com a identidade única caminhando a passos largos para o desenvolvimento. Progresso e unidade cultural do gigante país verde e amarelo eram temas indissociáveis nos discursos dos defensores da nação brasileira. Somente a partir da nova conjuntura política com o fim da Ditadura Militar, timidamente foram dados os primeiros passos que rediscutiam a mestiçagem como base de uma identidade brasileira. Os debates públicos e acadêmicos em torno das questões de gênero, da temática negra, dentre outras, ganharam corpo nos anos seguintes colocando em xeque a suposta identidade nacional advogada nos anos anteriores. No novo cenário político e com outros atores, os povos indígenas conquistaram e ocuparam seus espaços, reivindicando o reconhecimento e o respeito as suas expressões étnicas e culturais, bem como das condições para vivenciá-las. A mestiçagem enquanto apagamento, sombra que escondia as diferenças perdeu a primazia do status explicativo sobre o Brasil. O reconhecimento da pluralidade além de provocar um repensar do país, vem exigindo políticas públicas que dê conta dessa realidade. Daí a necessidade de se debruçar sobre a História do Brasil, da realização de pesquisas para uma melhor compreensão no presente da diversidade sociocultural em um país com dimensões continentais, com suas peculiaridades regionais e locais. Bibliografia ATHIAS, Renato. (Org.). Povos indígenas de Pernambuco: identidade, diversidade e conflito. Recife, Edufpe, 2007. CEDI/Centro Ecumênico de Documentação e Informação. Aconteceu: povos indígenas no Brasil/1982. Rio de Janeiro, CEDI, 1983. CIMI/Conselho Indigenista Missionário. Outros 500: construindo uma nova história. São Paulo, Salesiana, 2001. CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos índios no Brasil. 2a ed. São Paulo, Cia. das Letras, 1998. MONTEIRO, John M. Armas e armadilhas. In, NOVAES, Adauto. (Org.). A outra margem do Ocidente. São Paulo, Cia. das Letras, 1999, pp.237-249. OLIVEIRA, João Pacheco de. (Org.). A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração cultural no Nordeste indígena. 2ª ed. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2004. _ _ _. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. _ _ _. Muita terra para pouco índio? Uma introdução (crítica) ao indigenismo e a atualização do preconceito. In SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luis Donizete Benzi. (Orgs.). A temática indígena na escola. Brasília, MEC/MARI/UNESCO, 1995, p. 61-81. PALITOT, Estevão. (Org.). Na mata do sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza, Secult/Museu do Ceará/IMOPEC, 2009. RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização: a integração das populações indígenas no Brasil moderno. 5ª ed. São Paulo, Cia. das Letras, 1982. (A primeira edição é de 1970). _ _ _. Sobre o óbvio. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986. _ _ _. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2ª ed. São Paulo, Cia. das Letras, 1995. RICARDO, Beto; RICARDO, Fany. (Orgs.). Povos Indígenas no Brasil 2001/2005. Rio de Janeiro, CEDI, 2006. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930. São Paulo, Cia. das Letras, 1993. SILVA, Edson. Expressões da cultura imaterial indígenas em Pernambuco. In, GUILLEN, Isabel C. M. (Org.). Tradições & traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife, Edufpe, 2008, p.215-230. _ _ _.Xucuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá (Pesqueira/PE), 1959-1988. 2008. (Tese de Doutorado em História Social). Campinas, UNICAMP, 2008. _ _ _.Índios organizados, mobilizados e atuantes: história indígena em Pernambuco nos documentos do Arquivo Público. In, Revista de Estudos e Pesquisas, Funai, Brasília, v.3 nº. 1/2, jul./dez. 2006, p. 173-224. _ _ _ .“Confundidos com a massa da população”: o esbulho das terras indígenas no Nordeste do século XIX. In, Revista do Arquivo Público Estadual de Pernambuco, nº. 46, vol. 42, dez./1996, p.17-29. _ _ _ .Bárbaros, bons selvagens, heróis: imagens de índios no Brasil. In, CLIO – Revista de Pesquisa Histórica da Universidade Federal de Pernambuco (Série História do Nordeste n.º 5). Recife, Editora Universitária, 1994, p. 53-71. VALLE, Sarah M. (1992). A perpetuação da conquista: a destruição das aldeias indígenas em Pernambuco no século XIX. Recife: UFPE (Dissertação de Mestrado em História).

CONVITE

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

PÓS GRADUAÇÃO FUNESO

www.funeso.com.br/posgraduacao.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

NOTAS IMPORTANTES

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ano Letivo 20011